A denúncia corajosa da colega Diana Pereira desencadeou uma indignação compreensível; apontou para uma ação terapêutica disfuncional em que a primeira obrigação do profissional de saúde, de não mal ao doente, mais do que a própria doença, não foi cumprida.
Houve crime com intenção de causar lesões ao doente da parte dos cirurgiões do hospital de Faro? Duvido, mas as investigações que irão decorrer pela Ordem dos Médicos e pelo Ministério Público possivelmente vão esclarecer essa hipótese.
Proteger o doente implica o fim da cultura do silêncio, do medo, da culpabilização e da ameaça
Felizmente os casos como o do médico Dr Harold Shipman e, mais recentemente, o caso da enfermeira Lucy Letby, ambos no Reino Unido, profissionais que intencionalmente fizeram mal aos doentes a seu cargo, são muito raros.
Houve negligência? Sem dúvida. Pelo menos num dos casos denunciados, a retenção de objetos intra cavitários após procedimentos cirúrgicos (neste caso, compressas), representa uma quebra grave de boas práticas, uma clara violação das legis artis, estabelecidas a nível nacional, tal como as normas da segurança do doente publicadas pela Organização Mundial da Saúde na sua “Orientação Cirurgia Segura” de 2009.
Mas crime, negligência e erro médico não são atos homólogos: o crime é raro, a negligência menos rara, mas o erro clínico é muito frequente. Um estudo pelo grupo do Professor Paulo Sousa da Escola Nacional de Saúde Pública apontou para uma incidência na ordem dos 10% de todos os atos clínicos, um índice comparável com o resto da Europa e os EUA. É uma consequência inescapável da complexidade dos sistemas de prestação de cuidados de saúde, a falibilidade dos profissionais e a enorme variabilidade de circunstâncias nos recipientes desses cuidados.
Parece muito atraente a noção de que o erro pode ser eliminado se apontarmos os indivíduos responsáveis para os culpabilizar, envergonhá-los, despedi-los ou re-treiná-los. A verdade é que na esmagadora maioria de casos quando as coisas correm mal não é por crime ou negligência (relativamente raros), mas por erros (comuns) devidos às complexidades e falibilidades do sistema de saúde e dos seus constituintes. Cada erro médico ou ‘near miss’ devia servir de oportunidade para se perceber que partes do sistema falharam e que partes funcionam, e como melhorar a maneira de trabalhar.
O desafio não é eliminar o impossível, o erro, mas sim reorganizar a maneira de trabalhar tendo em conta a falibilidade humana e impedir que essa falibilidade se traduza em danos para o doente.
A aviação civil já aprendeu esta importante lição há muito tempo. As notificações e as chamadas da atenção para eventos adversos são obrigatórias, reduzindo dramaticamente a incidência dos erros humanos: o silêncio, quando as coisas correm mal, garante a continuação das condições que predispõem ao mesmo erro voltar a acontecer.
Quais as medidas a tomar?
Se for averiguado crime, que haja julgamento e castigo.
Se houve negligência, que sejam responsabilizados quem não cumpriu a normas estabelecidas.
Se houve erro humano, investigar exaustivamente as circunstâncias, sem culpabilizar os profissionais envolvidos, disseminar os achados e rever os protocolos dos procedimentos para minimizar futuros erros.
Problemas e desafios existem em todos os sistemas de cuidados de saúde, o nosso incluído, e haverá sempre problemas de variada gravidade.
A coragem da colega Diana Pereira é um momento importante para chamar a atenção de todos para o que acima afirmo: não são só os profissionais de saúde que cometem erros, mas também os políticos e os gestores que fazem parte integral do sistema. O sistema inclui procedimentos, condições de trabalho, constrições e prioridades que determinam a segurança dos doentes. É uma responsabilidade coletiva e é preciso uma mudança sísmica na relação tradicional entre estes componentes, o que requer coragem e empenho da parte de todos.
Proteger o doente implica o fim da cultura do silêncio, do medo, da culpabilização e da ameaça. O erro clínico deve ser notificado, discutido e aproveitado para melhorar a prestação de cuidados aos doentes, usando princípios científicos bem estabelecidos sobre a influência dos fatores humanos no erro.
A notificação do erro deveria ser feita não só através dos sistemas clínicos mas também perante o doente e familiares com esclarecimentos e sinceros pedidos de desculpas. Antes de qualquer procedimento, tal como a obtenção do consentimento informado, os doentes devem ser rigorosamente informados dos riscos desse procedimento, assim como das medidas operacionais a funcionar para minimizar a ocorrência de erros.
Os conselhos de administração hospitalares devem, com os diretores de serviço, assumir a responsabilidade final pela segurança do doente com uma cadeia de responsabilizações clara e bem definida.