Uma mesma realidade
quebra-se em muitas realidades divergentes,
quando é vista a partir de pontos de vista distintos.
Ortega y Gasset, A Deshumanização da Arte
Imagine o caro leitor que está a ver um filme. Na tela uma cena dramática: Pedro tem nos braços a noiva moribunda que acaba por morrer. Os seus melhores amigos, Paulo e João, assistem à sua desventura. No entanto, reagem de forma muito diferente: Paulo, empatizando com o amigo, sente o seu sofrimento como se fosse próprio e por isso chora, e desespera em uníssono com o recém viúvo. João, pelo contrário, mantém-se sereno.
Quem está de fora pensará, muito provavelmente, que Paulo tem um temperamento compassivo enquanto João possui um coração frio, feito de pedra. João não se deixa contagiar pelo sofrimento dos seus dois amigos, não entra em desespero, é o único que mantém a calma. Há um século atrás, Ortega y Gasset, o filósofo que descreve esta cena no seu ensaio Musicalia I, diz-nos que o João tem um temperamento de artista. João, afinal, possui uma alma sensível e refinada. Precisamente por isso, João consegue manter a distância espiritual que é condição sine qua non para a contemplação artística. É o estabelecimento desta distância espiritual que permite em João o surgimento de sentimentos secundários que não são de participante mas sim de apreciador estético. Ortega pretende com este exemplo demostrar o problema dos falsos juízos estéticos. A sua falsidade decorre de o contemplador tomar em consideração os conteúdos da obra de arte – por isso lhe agrada, por empatia com os conteúdos – e não da sua forma. Ora é a forma da representação que, justamente, deve ser avaliada no caso da contemplação estética.
No livro intitulado A Deshumanização da Arte Ortega y Gasset descreve uma variação desta situação: Um homem ilustre agoniza. A sua mulher está junto ao leito. Um médico conta as pulsações do moribundo. No fundo do quarto, um jornalista que veio fazer a cobertura da notícia e um pintor que o acaso conduziu até ali, assistem à cena. Embora todas estas pessoas presenciem um mesmo facto, a diferença das suas percepções é tão grande que poderia não se tratar da mesma realidade. Se utilizarmos como critério a distância espiritual veremos que na esposa do moribundo esta distância é mínima. Ela não assiste à cena. Vive-a. Está dentro dela. O médico encontra-se já um pouco mais afastado, intervém profissionalmente, mas sem o sofrimento desesperante da mulher. No entanto, tem de se interessar no que está a acontecer, essa é a sua responsabilidade. Se não o fizer o seu prestígio profissional poderá ficar em risco. O jornalista, encontra- se já bastante afastado daquela realidade dolorosa. Está ali, tal como o médico, devido à sua profissão, mas não intervém, limita-se a ver. Para ele a situação é como um espectáculo que depois deverá relatar no jornal. Não vive, contempla. No entanto, para interessar os seus leitores, tentará comovê-los, tudo fará para os emocionar, para que derramem lágrimas. O jornalista finge viver a cena para alimentar emocionalmente a sua literatura. Apenas o pintor tem uma atitude puramente contemplativa. Atende ao exterior, às luzes e sombras nas suas tonalidades e matizes. É ele quem alcança o máximo de distância espiritual.
É muitíssimo importante que não se confunda o domínio da Artes, da Estética, com o domínio da Ética. Em questões de ética a empatia é muito favorável, dela decorre a capacidade de se colocar no lugar do outro e de sentir as suas dores, a sua tristeza, o seu sofrimento. Só assim surge o amor ao próximo capaz de gerar a compaixão verdadeira. No entanto, se entramos em fusão com o outro que se encontra numa situação desesperada, se entramos em desespero nós também, dificilmente conseguiremos ajudar. Só consegue ajudar quem se afoga, alguém que não se esteja a afogar também. Caso contrário ambos naufragam! Então, talvez também em questões de ética seja benéfica uma certa dose de distância espiritual.
Nekoashi-dachi
Beleza feroz e graciosidade mortal
Nekoashi-dachi é uma postura de Karate que permite afastar-se do adversário, aquilo que tecnicamente se chama sair da distância para poder acertar no inimigo. Este movimento proporciona também uma pausa no tempo de combate. É um espaço-tempo que pode parecer mínimo a quem assiste, mas extraordinariamente dilatado a quem luta. Executa-se da seguinte forma: todo o peso repousa sobre a perna de trás, cujo joelho está flectido. O pé traseiro encontra- se girado cerca de 20-30 graus e o joelho fica alinhado no mesmo ângulo. Apenas os dedos dos pés da frente repousam no chão, posicionados à frente do calcanhar traseiro. Não há peso no pé da frente, e não há inclinação na articulação do tornozelo – joelho da frente, canela dianteira, e a elevação do pé (mas não dos dedos do pé) – formam uma linha única, vertical, na linhagem de Shito-ryu. Também conhecida no Ocidente como postura do gato, é descrita como possuindo “uma beleza feroz e uma graciosidade mortal”.
Perguntar-me-á o caro leitor, por que motivo lhe falo em posturas de Karate numa página de filosofia?… Posturas para melhor acertar no inimigo… Qual inimigo?… Quem sabe se não seremos nós próprios o nosso pior inimigo…
Frequentemente, quando nos vemos numa situação difícil tendemos a não reagir da melhor maneira. Respondemos mal e dizemos coisas que verdadeiramente não sentimos, que podem magoar o próximo. Por vezes, temos uma reacção intempestiva, cuja intensidade pode ser desproporcionada ao estímulo que a provocou. Eventualmente, carregam-nos num interruptor emocional, pressionam uma nódoa negra ou reabrem uma ferida, e a resposta sai com a violência que a dor provocada suscita. Estamos demasiado perto, excessivamente envolvidos, permitimos que a efervescência do momento tome conta de nós! Mais tarde, quando a tempestade acalma, verificamos quanto dano provocámos e o muito que agora levará a reparar! Talvez tudo isto fosse evitável…
Decompondo a palavra Karate “kara” significa vazio e “Te” significa mão. O karate consiste então na arte de lutar com as mãos vazias. Mas há também um significado filosófico: o vazio significa a ausência de pensamentos e emoções negativas proporcionado pela serenidade da mente. O treino do corpo co-existe com o adestramento da mente.
Na minha prática diária de Yoga, de que sou instrutora, e de Karate em que sou aluna experimento cada dia a coincidência de estados mentais com posturas físicas. Os conteúdos filosóficos adquirem uma força incrível quando são experimentados com o corpo!
O que aqui proponho é um Nekoashi-dachi mental. Deixar de estar tão envolvido no assunto que atormenta, ganhar distância, tomar folgo. Essa distância alarga horizontes, permite encontrar novos pontos de vista. Criam-se condições para que o pensamento criativo germine. Soluções até então impossíveis sequer de sonhar, começam a desfilar no novo horizonte de possibilidades que agora se desenha à nossa frente.
Inscrições para o Café Filosófico: [email protected]
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Junho)