Quando Cristo e os Seus Santos Adormeceram, de Sharon Kay Penman, publicado pela Kathartika, com tradução de Elsa T. S. Vieira, e revisão de Rita Almeida Simões, é um fantástico cartapácio, de cerca de 800 páginas de letrinha miudinha, que não deve desencorajar os mais empedernidos leitores. Um romance épico, sem dragões nem magia, ainda assim verdadeiramente apaixonante. A prosa é escorreita e enlevante. O livro faz ainda parte de uma série maior, com cinco volumes de leitura autónoma.
A autora Sharon Kay Penman, nascida em Nova Iorque em 1945, formou-se em Direito, e passou a dedicar-se exclusivamente à escrita por volta de 1980, sendo considerada uma das maiores referências mundiais da ficção histórica medieval por autores sobejamente conhecidos como George R. R. Martin, Bernard Cornwell, Steve Berry, Margaret George e Elizabeth Chadwick. Faleceu em 2021, vítima de uma pneumonia.
A ação deste romance histórico inicia em Inglaterra em 1001. Nas primeiras páginas, ainda que com alguns saltos, e mudanças de personagens, há um cuidado por parte de um narrador omnisciente de dar a conhecer uma relativamente extensa galeria de personagens. Páginas depois, agora em 1135 d.C., os sinos da igreja dobram pela morte do rei Henrique I de Inglaterra.
É então que se torna cada vez mais iminente a possibilidade de os barões de Inglaterra enfrentarem a perspetiva indesejável de virem a ser governados por uma mulher, pois a bela e indomável filha de Henrique, Maude, condessa de Anjou, é a herdeira direta ao trono inglês. Até que o inesperado acontece.
A narrativa oscila ligeiramente entre a de um narrador (ou melhor dizendo, uma narradora) omnisciente e a narração que acompanha a focalização das personagens, como aliás convém a uma voz narrativa que se escuda, assim, na perspetiva destas personagens para não tecer juízos de valor nem emitir opinião. A intriga desfia-se assim num tom imparcial, como aliás convém a um romance cujas personagens nunca são inteiramente boas ou más (todas as suas ações podem acarretar grandes consequências). No geral, a autora demonstra uma voz tão segura quanto isenta, e evita demasiada explicação (para que o leitor mantenha a ilusão de estar a ler um relato tão contemporâneo quanto as crónicas que lhe parecem servir de fonte histórica), assim como qualquer anacronismo. Encontram-se, contudo, fugidios lampejos de clara ironia e fino humor: “a privacidade era coisa tão rara como avistar um unicórnio” (p. 194).
O que é inequívoco é a forma como esta guerra que se arrasta ao longo de anos tem grandes repercussões na população da Inglaterra, “uma terra atormentada e sem lei” devastada por uma “amaldiçoada guerra”, à qual, e pela qual, se sobrepõem ainda outras calamidades, como a da fome. São raros os momentos em que o povo aqui figura, mas é especialmente pelo povo que percebemos a angústia que se vive no reino, como a certa altura exclama uma freira, interpelando um parente nobre: “O que fizemos nós para merecer tanta miséria?” (p. 423)
O próprio título aliás tem um significado muito específico, como se avança na passagem que dá conta do início desta guerra sangrenta: “E assim começou, para o pobre povo de Inglaterra, um período de sofrimento tão grande que lhe chamaram a época em que “Cristo e os seus santos adormeceram” (p. 187).
Um romance histórico cuja leitura é menos exigente do que viciante
Um romance histórico (onde por vezes são ainda avançadas passagens retiradas de algumas crónicas) cuja leitura é menos exigente do que viciante, onde se denota claramente o facto de ser escrito por uma mulher (lá iremos), que nos revela como, ainda que muitas vezes desconsideradas pelos homens, elas sejam capazes de interpretar os sinais dos tempos e de ler as estratégias destes jogos de poder pelo trono tão bem como os seus maridos – chegando mesmo a orientá-los e, em alguns casos, a substituí-los, como acontece com a mulher de Stephen, que também terá de comandar batalhas.
Esta portentosa obra de Sharon Kay Penman destaca-se sobretudo por subtilmente contrapor dois opositores de sexos diferentes, cujos temperamentos parecem estranhamente trocados. A bela filha de Henrique, Maude, condessa de Anjou, que seria a herdeira legítima ao trono de Inglaterra, é acusada de ser demasiado “masculina”. Constantemente acusada de ser pouco simpática ao povo, atribuem-lhe a culpa por não ser coroada: “Se não tivesse sido tão altiva, se tivesse tido mais tato, se tivesse sido mais feminina…” (p. 89).
Stephen, o primo de Maude, é, no entanto, unanimemente aceite como rei, em especial pelo povo, quando reivindica o trono inglês, não por ser um herdeiro legitimamente próximo na linha de sucessão, mas porque é “homem”.
“As Escrituras dizem às mulheres que se sujeitem aos maridos, dizem que as mulheres devem guardar silêncio na igreja. Como poderia então ser vontade de Deus que uma mulher exercesse o poder real?” (p. 103)
Contudo, Stephen enquanto homem é abençoado com encanto e carisma, além de uma generosidade, que se pode revelar a sua maior fraqueza, pois a misericórdia que ele diversas vezes manifesta seria “mais própria de uma mulher”, enquanto que Maude é muito mais inflexível: “Maude não dava ouvidos a ninguém (…)”, e “Stephen dava ouvidos a qualquer um” (p. 300). Por outro lado, Maude, sendo mulher, está quase sempre ausente do palco. A sua vida e o seu reinado (ou mais propriamente o do filho, pois Maude acaba por aceitar a inevitável conclusão de que o reino nunca aceitará uma mulher para o governar) são decididos no “fio de uma espada” e “comprada com sangue” (p. 118) pelos homens que por ela se guerreiam. Como a certa altura a personagem ironicamente lamenta: “O meu futuro será decidido em Lincoln, mas não por mim. Nem sequer posso lá estar enquanto outros decretam o meu destino. Como Deus, Nosso Senhor, achou por bem fazer-me nascer mulher, não posso fazer nada a não ser esperar.” (p. 218) Uma espera cruel que lhe tira anos de vida e a chega a ficar sem ver os filhos durante anos. Curiosamente, há ainda uma contraposição subtil entre Maude e Leonor de Aquitânia, uma figura histórica várias vezes mencionada, e que chegará a entrar em cena mais à frente, cujo poder só pode ser consolidado quando se casa com Luís, o filho do rei francês, pois é o marido que lhe confere “poder suficiente para proteger a sua herança” (p. 121).
Leia também: Cidade da Vitória, de Salman Rushdie: Uma cidade de palavras – as criadoras de mundos e reinos | Por Paulo Serra