Vivemos numa época em que a especialização prevalece e a distância e a separação se constituem em palavra de ordem. Os domínios da arte, do conhecimento e da ética encontram-se diferenciados e totalmente independentes uns dos outros. Contudo, nem sempre foi assim. Platão, no séc. IV a.C. estabelecia uma equivalência entre a verdade, a beleza e o bem. Esta trilogia durou até ao momento em que Aristóteles “libertou” as, pela primeira vez assim chamadas, “Belas Artes” da obediência à verdade.
Já no séc. XVIII o filósofo alemão Emanuel Kant estabeleceu o belo como símbolo do bem, sendo este vínculo amplamente tratado na sua obra Crítica da Faculdade do Juízo, que versa sobre o belo na arte e o sublime na natureza.
À medida que o tempo avançou, as divisões continuaram a suceder-se a e a multiplicar-se. O belo deixou de ser a única categoria estética reconhecida. Poder-se-ia até dizer que o belo ficou fora de moda, tendo outras categorias estéticas ― como o interessante ou o grotesco ― adquirido preponderância. O objecto a ser retratado pela arte não tem que ser belo e a forma como este é representado também não. E que dizer do bem e da verdade? Estes dois outros componentes da equivalência platónica também deixaram de importar.
Porém, num momento em que a guerra eclode em plena Europa, interrompendo um extenso período de paz, parece que a arte volta a assumir o seu papel de embaixadora de uma causa:
A famosa banda Pink Floyd reuniu-se para, junto com o cantor ucraniano Andriy Khlyvnyuk da banda BoomBox, gravar o tema Hey hey rise up. A canção, inspirada na marcha patriótica ucraniana intitulada Oi u luzi Chervona Kalyna foi lançada em vários canais de streaming, como o YouTube. Os lucros revertem a favor do fundo Ukrainian Humanitarian Relief.
A cantora ucraniana Jamala, que venceu o Festival da Eurovisão em 2016, é hoje uma refugiada da guerra. Quase como um prenúncio, esta canção vencedora intitula-se 1944 transportando-nos para o ano em que os tártaros da região da Crimeia ― entre eles a bisavó da cantora ― foram deportados. Esta limpeza étnica foi levada a cabo pelo exército da União Soviética, sob o pretexto de alegada colaboração desta minoria étnica Muçulmana com as forças da Alemanha Nazi. Agora é a bisneta Jamala, filha de mãe arménia e pai muçulmano (tártaro da Crimeia), quem foge da sua pátria com dois filhos pequenos nos braços. Os horrores da guerra teimam em repetir-se, e a canção de Jamala, vencedora há 6 anos atrás, reveste-se de uma aura de terrível profecia.
A chamada “arte de rua” tem tido um papel preponderante: artistas de todo o mundo criaram murais comoventes para apoiar a Ucrânia. No caso português, o grafiti tem a autoria de MrDheo, intitula-se “Freedom Fighter” (Lutador pela Liberdade) e pode ser contemplado na rua Roberto Ivens em Matosinhos.
A famosa revista de moda Vogue, habitualmente dedicada a questões mais frívolas, lançou a campanha Fashion for Peace com uma colecção exclusiva de 10 obras de seis artistas nascidos e sediados na Ucrânia ― Anna October, Anton Belinskiy, Gunia Project, Ienki Ienki, Gudu e DressX ― sendo que todos os lucros reverterão a favor da instituição Save The Children Ukraine. Trata-se de uma colaboração especial da Vogue Ucrânia e da Vogue Singapura que coloca obras de arte, esboços, e fotografias à venda na plataforma OpenSea. O “Intergalactic Freedom Dress” ― um vestido longo em tule azul marinho, com metade do corpete em armadura dourada ― inspira-se não apenas nas cores da bandeira ucraniana, mas também na delicadeza e coragem deste povo lutador. Foi criado pela retailer de moda digital DressX.
Fonte da Exaustão, intitula-se a escultura de Pavlo Makov, é o ex-libris do pavilhão ucraniano na Bienal de Veneza que começou a 23 de Abril e durará até 27 de Novembro deste ano. A obra compõe-se de 28 funis de bronze, cada um deles com 2 canais de saída, organizados em forma piramidal. A água que escorre dos funis divide-se ao meio, sucessivamente, tornando-se cada vez mais escassa. No momento da sua criação, o autor tinha em mente uma metáfora: o esgotamento da humanidade e da democracia. Porém, nas actuais circunstâncias de invasão da Ucrânia pela Rússia, a escultura assumiu uma nova identidade, tornou-se “arte de guerra” e aponta para a batalha contínua que se vive neste momento. Pavlo Makov e a sua equipa de curadores sentem-se embaixadores do seu pais e da sua cultura. Neste momento crucial em que a existência da Ucrânia como nação é posta em causa pelo país invasor, consideram essencial demostrar que a Ucrânia possui uma identidade cultural sólida. O pavilhão presta também um tributo a Maria Prymachenko, uma das artistas mais conceituadas do séc. XX, cujo museu contendo muitas das suas obras foi bombardeado pelas forças russas.
A equipa de curadores, entrevistada pela CNN Style a 22 de Abril, foi questionada sobre a capacidade da arte para acabar com o actual conflito. “Eu costumo dizer que a arte é mais um diagnóstico do que um remédio. Não tenho a certeza de que a arte possa salvar o mundo, mas pode ajudar a salvá-lo”, respondeu Makov. Lanko também já tinha expressado a sua opinião na mesma linha de raciocínio: “A arte não vai parar esta guerra imediatamente, mas pode evitar a próxima.” Para German, a Fonte da Exaustão não é um símbolo de optimismo, mas acredita que o facto de terem chegado a Veneza estimula a esperança e mostra que a Ucrânia é capaz de avançar mesmo nos tempos mais sombrios: “Mesmo em tempos de guerra, somos capazes de construir nosso futuro.”
No seu discurso, por videoconferência, na Bienal de Veneza, o presidente Zelensky afirmou que a arte pode desempenhar um papel poderoso na representação do sofrimento da Ucrânia às mãos da Rússia, por causa da sua capacidade única de transmitir emoção e perda. Acrescentou que todas as tiranias se opõem à livre expressão artística por causa de sua capacidade de ilustrar erros morais. “A arte pode dizer ao mundo o que não pode ser partilhado de outra forma. É a arte que transmite sentimentos.”
De facto, vários artistas ucranianos recorrem à arte para se expressar enquanto se abrigam dos bombardeamentos. Os esboços de Daniil Nemirovsky, desenhados num bunker em Mariupol são um exemplo das obras que vão estar em exibição em Veneza.
A violinista Vera Lytovchenko, de Kharkiv, leva consigo o instrumento cada vez que se abriga das bombas num bunker. O seu violino silencia-as e traz conforto aos que ali se encontram. A música é a arte mais “invasora” de todas as artes, ela entra-nos pelos poros adentro, queiramos ou não, ela interfere com a pulsação do nosso coração, a unidade rítmica primordial. Mesmo sob a ameaça do perigo eminente, a contemplação do belo pode transcender o sofrimento.
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* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico