Nos próximos dias teremos no Algarve uma equipa de televisão de Andorra, com o propósito de fazer um documentário sobre a extraordinária vida de um russo que quis ser rei de Andorra e no meio de muitas peripécias, passou por Olhão em 1935, onde era conhecido pelos marítimos como o “mano-rei”!
Efetivamente, este russo aventureiro chamado Boris Skossyreff, que tinha fugido da revolução bolchevique em 1917, autoproclama-se em 1934, Príncipe de Andorra, em representação da coroa real francesa, que alegava ser a legitima herdeira do coprincipado.
Apesar de Boris ser casado com uma francesa endinheirada, nesta aventura vemo-lo acompanhado por uma milionária norte-americana (Florence Marmon) e alguns apoios monárquicos em França e em Espanha. Na sua luta pelo trono, em 1934, tenta convencer a elite política de Andorra, assume os atos próprios de um verdadeiro monarca, concede entrevistas a jornais, organiza atos oficiais, publica folhetos, uma nova Constituição e, por último, declara guerra ao copríncipe espanhol, o Bispo de Urgel! Este, irritado com a gigantesca encenação teatral de Boris, pede ao Estado espanhol que o prenda, o que vem a suceder em 20 de julho de 1934.
Ora, em Espanha, Boris é um prisioneiro incómodo que poderá subverter o equilíbrio de poderes em Andorra e por isso, em 19 de novembro de 1934, será expulso para Portugal, de forma bizarra do ponto de vista diplomático: o Estado espanhol paga a um contrabandista português para o colocar em Portugal, através da serra de S. Mamede.
A travessia de 25 Km demorou 3h30mn, apresentando-se Boris às autoridades portuguesas de Portalegre num estado deplorável.
Esta entrada em Portugal é no mínimo misteriosa! Primeiro porque não provocou um protesto diplomático de Portugal. Segundo porque Boris foi acompanhado até à fronteira por Francisco Rolão Preto, um monárquico português então próximo do fascismo, que lhe deu uma carta para mostrar a um amigo em Portalegre.
Esta presença de Rolão Preto, assim como o restante apoio logístico e financeiro desconhecido que Boris teve na sua aventura, a capacidade de estar sempre bem informado e de produzir todos os panfletos e brochuras traduzidas para o catalão e até a estranha forma como irá passar a fronteira para Portugal sem causar embaraço diplomático entre Portugal e Espanha, leva a crer que tinha apoios secretos ao mais alto nível, presumivelmente o apoio financeiro de Florence Marmon e o apoio político dos monárquicos legitimistas franceses e os monárquicos falangistas espanhóis.
Daqui segue para Lisboa, onde é bem tratado pelas autoridades e hospeda-se no Hotel Frankfort, dá entrevistas e faz amizades com jornalistas e intelectuais como Mário Domingues, Ferreira de Castro e Roberto Nobre.
No entanto, Boris quer regressar a Andorra para continuar a sua luta. Mas primeiro tem de conseguir um passaporte português válido para sair de Portugal, e depois, tem de encontrar um meio de transporte que rodeie Espanha…
Aparentemente, “alguém” bem posicionado chegou a oferecer-lhe a possibilidade de se naturalizar português, mas Boris, romanticamente recusou, porque a sua pátria seria Andorra!
Em 18 de Maio de 1935, Boris iria parar a Olhão, terra piscatória com fama de ter muitos marítimos que poderiam levá-lo a Marrocos, então uma possessão francesa, e que serviria como interlúdio para voltar a Andorra.
Em Olhão permaneceu quase 6 meses, tendo confraternizado com a elite e a arraia-miúda piscatória da terra, que lhe chamavam mano-rei.
Era frequente ver Boris ir à ilha do Coco para dar algumas braçadas. O marítimo Corta-Machados era o dono da embarcação a remos que levava Boris e este gostava de remar em parelha. Corta-Machados, quando sentia que Boris não o acompanhava no remar, dizia-lhe de forma bem olhanense: – Rema daí, mano Rei! E assim se reforçou a crença que já vinha do tempo do Rei D. Carlos, que os olhanenses, no seu modo próximo de tratar os outros, até tratavam os reis por manos…
Conheceu aí Francisco Fernandes Lopes, médico e extraordinário homem de cultura que escreveu em 1935 vários artigos sobre o “rei de Andorra”, no jornal “O Diabo” com muitas informações sobre a história de Boris, frequentemente confirmadas pelas informações retiradas nos arquivos da Polícia de Defesa e Vigilância do Estado (a então polícia política do regime).
Nestes artigos estão relatadas viagens à ilha da Culatra e Armona, a Albufeira, a Monchique e à Praia da Rocha e Monte-Gordo.
Em Albufeira ficou três dias e volta “encantado, contando-me excursões maravilhosas: a pé pela parte antiga da vila, muito pitoresca, com as suas escadas e as casas à moda do Bairro de Alfama; em barco, «out–board» do amável senhor Joaquim Queiroz Mateus, aos olhos de água doce que borbulham, em pleno mar, a mais de vinte metros da praia arenosa e rochosa; a nado, na hora «chic» com toda a companhia amiga masculina…”
Da praia da Rocha revela “que não tem rival em toda a Europa!…”, apesar da mediocridade do serviço hoteleiro de então.
De Monchique vem a “elogiar a magnificência da Mata das Caldas que muito se assemelha a ‘Les Escaldes’ de Andorra, pela vegetação, frescura e profusão de águas correntes…”
Num domingo de agosto faz uma excursão à ilha da Culatra e às ruínas da Fortaleza de S. Lourenço, combinada com o Dr. Mário Lyster Franco. Na Fortaleza, “Boris não resiste a um banho de mergulho e à natação com os companheiros, em nudismo adâmico, (…), mas à saída espetando nos divinos pés, bicos dos ouriços que abundam… Tostado de sol, com a pele negro-tição toda a tarde levou a torrar-se depois, em cima da Ilha da Culatra, onde na volta arribámos para o almoço – jantar: conservas, amêijoas, polvo assado, uvas, melancia, que ele regava a vinho exuberantemente… (…) Ao saltarmos em Olhão – noite fechada quási – Boris estava radiante: a fadiga dissipara-se-lhe e dizia-me que fora um dia de vida dinâmica, como ele adorava, sem sombra de semelhança com a vida de cão que se via arrastado a passar aqui, em constante passividade e tédio…”
Graças aos esforços do advogado Dr. Carlos Fuzeta e de outros amigos olhanenses, Boris consegue finalmente um passaporte português por um ano e sai de Olhão, certamente por Lisboa, num barco para Génova e finalmente para Marselha, onde desembarca em 22 de novembro de 1935 para se reencontrar com a sua esposa francesa.
Mas não se julgue que a sua vida acalmou, pelo contrário, acelerou e de que maneira!
Em França a polícia apreende-lhe temporariamente o passaporte português e depois de 3 meses na prisão voltam a recambiá-lo para Portugal, onde chega dia 12 de maio de 1936 com a esposa, cães e carga, e onde é novamente preso por não ter autorização de residência. Em junho de 1936 regressa a Espanha, mas com o início da Guerra de Espanha segue para França onde volta a ser preso por breve período. Segue-se 1938 como um ano mais calmo para Boris pois as autoridades francesas vão-no tolerando, não sabendo o que fazer com ele…
Infelizmente, com o final da Guerra de Espanha são criados vários campos de refugiados em França, onde as autoridades aproveitam para internar indesejáveis como Boris, pelo que em fevereiro de 1939 regressa à prisão primeiro no campo de Rieucros, depois no campo militar de Verner d’Ariége, e só em outubro de 1942 é libertado pelos alemães quando se oferece para trabalhar na Alemanha, juntamente com muitos outros refugiados destes campos. Graças a uma prima residente em Berlim e com simpatias nazis é recrutado para a frente russa, onde foi intérprete do exército alemão. Consegue também que a sua esposa francesa vá para Berlim acompanhá-lo.
Com a vitória dos aliados, Boris é primeiro preso pelos americanos e depois dum breve período de liberdade, volta a ser preso em 4 de dezembro de 1946 pelos franceses que ocupavam Berlim, sendo muito maltratado devido ao seu colaboracionismo com os nazis.
Passou a ter residência em Boppard (Alemanha Ocidental) mas por qualquer razão ainda não esclarecida (o mais provável é ter sido numa missão secreta a mando dos recém-criados serviços secretos alemães, às ordens dos americanos na sua luta contra os soviéticos) deslocou-se à zona controlada pelos soviéticos em 1948 e acabou por ser preso e condenado a 25 anos de trabalhos forçados num campo da Sibéria em 1950. Foi libertado em 1956, graças a um acordo político que beneficiou cerca de 10.000 soldados alemães que ainda se encontravam presos na União Soviética, voltou para Boppard, enviuvou em 1965, voltou a casar em 1969 com uma rapariga 39 anos mais nova que ele, divorciou-se no ano seguinte, e morreu só em 1989!
Um dos factos mais intrigantes de Boris é saber como ele conseguiu sobreviver como prisioneiro de guerra nas mãos dos russos, sendo ele um traidor! Outros factos continuam a intrigar os estudiosos, sendo levantadas frequentemente hipóteses de ter funcionado como espião britânico na 1ª Guerra Mundial, depois dos nazis na aventura andorrana, mais tarde dos americanos na luta contra os soviéticos, e finalmente dos soviéticos na tentativa de o infiltrar nos serviços da NATO, quando foi libertado e regressou à Alemanha na fase final da sua vida.
Seja como for, Boris teve um triste destino depois de sair de Portugal, embora sempre revelando uma extraordinária capacidade de sobrevivência… Como ele se deve ter arrependido de ter recusado a residência portuguesa! E como ele se deve ter tantas vezes lembrado dos bons momentos que passou no Algarve, dos passeios que fez em Olhão à ilha do Coco, à Culatra, a Monte Gordo, Albufeira, Praia da Rocha, Monchique!
Talvez por se lembrar deste interlúdio feliz em Portugal, ele continuou a escrever a Francisco Fernandes Lopes, sendo a última carta conhecida de 23 de julho de 1965, a anunciar a morte da sua esposa.
O que é o coprincipado de Andorra?
O coprincipado de Andorra sempre teve dois príncipes: o Rei de França e o Bispo espanhol de Urgell. Quando a monarquia em França foi substituída pela república, o presidente da república francês passou a exercer as funções de príncipe, que antes cabiam ao rei. Ora, Boris Skossyreff viu nisto a oportunidade para reclamar que o legítimo príncipe era ainda o representante da coroa francesa e não o presidente da república que, segundo ele, seria um mero usurpador.
Quem foi Rolão Preto?
Francisco Rolão Preto foi um dos fundadores do Integralismo Lusitano e líder do Movimento Nacional-Sindicalista em 1933, um movimento monárquico muito próximo do fascismo italiano. Neste ano faz um discurso contra Salazar por este ter estabelecido um regime de partido único e por esta razão, é preso e exilado em Espanha onde reside em 1934 na casa de José António Primo de Rivera, o fundador da Falange Espanhola e filho do ex-ditador Miguel Primo de Rivera, com quem terá colaborado na redação do programa da Falange espanhola. É neste período que Rolão Preto apoia a entrada de Boris Skossyreff em Portugal, revelando que Boris teve os falangistas espanhóis a apoiá-lo. Curiosamente, Rolão Preto abandonaria as suas ideias radicais e passaria a estar mais tarde ligado aos democratas monárquicos que integraram a oposição ao Estado Novo. Após o 25 de abril foi militante do Partido Popular Monárquico, tendo falecido em 1977.