Os planos servem para isto mesmo: a gente faz um muito bem feitinho e mal se precata está tudo voltado de pernas para o ar. Este pensamento um tanto ou quanto melancólico aplica-se ao nosso(1) projeto de viajar à moda antiga de costa-a-costa por este longo Algarve. “Então que se passa?”, perguntará o leitor alarmado com este toque de pessimismo. É que, estarão lembrados os leitores mais fiéis, esta viagem – vá lá!, peregrinação – teve como linha condutora as paragens do comboio. Esta ideia foi-nos aliás sugerida pelo início das tão aguardadas obras de eletrificação e melhoramentos da Linha do Algarve. Pareceu-nos que esta seria uma justa homenagem ao arranque das obras no troço Vila Real de Santo António-Faro.
Ora, se neste troço existe uma sobreposição aceitável entre pontos de interesse e estações, já o mesmo não acontece no troço Faro-Lagos. E mesmo no troço anterior existem falhas, que tivemos que colmatar com o recurso ao velho automóvel. São disso exemplo Alcoutim, Castro Marim e Cacela entre alguns outros. De facto, a nossa promessa inicial (e intenção) de utilizarmos exclusivamente o comboio foi aqui e ali atraiçoada, a bem da descoberta de tesouros do Algarve menos icónicos mas não menos apaixonantes. E quando iniciarmos o percurso Faro-Lagos a coisa vai piorar mais, pois a linha orienta-se a Norte antes de infletir para Oeste, mas dá-se ao luxo de falhar cidades como Loulé! Quem estiver interessado num resumo da história do caminho de ferro algarvio e dos seus avanços e recuos, pode consultar a internet onde terá um primeiro vislumbre da incapacidade decisória nacional em matéria de grandes obras públicas.
Enfim, quando lá chegarmos logo resolveremos esses problemas. Agora o que nos compete é referir que o atual trajeto do comboio – com ou sem eletrificação – não vai resolver todas as questões de mobilidade regionais, muito longe disso. Mas aproveitemos o que existe e regalemo-nos com a beleza tranquila dos troços entrevistos a partir das janelas de uma carruagem (os vidros podiam estar mais limpinhos…); nós o fizemos e muitos outros também, sobretudo estrangeiros e, sejamos francos, eles são atualmente e continuarão a ser no futuro os grandes utilizadores deste serviço.
Todavia, é com muitas hesitações e saudades já antecipadas que nos preparamos para na próxima crónica iniciarmos a segunda pernada desta viagem. Mas, é justo que eu o confesse: esta suspensão da narrativa deve-se mais ao Homem Cardoso do que a mim. De facto, o meu amigo António é ainda mais guloso que fotógrafo e teimou em fotografar algumas das especialidades da doçaria algarvia e, como uma coisa leva a outra, acabámos por descobrir não um, mas dois tesouros.
É conveniente precisar que temos viajado sem a companhia das nossas consortes e em matéria gastronómica somos mais comedores que fazedores pelo que, sem consultoria adequada, foi conversando aqui e ali, encostando-nos aos balcões das pastelarias que lá conseguimos entender os rudimentos desta arte.
Primeira descoberta: a base de quase toda a doçaria algarvia é o figo, a amêndoa e o incontornável açúcar. Existem doces chamados “queijinhos de figo” e outros chamados “queijinhos de amêndoa”, cobrindo estas duas designações uma enorme variedade de feitios e sabores porque, para além deste básico, há que juntar os ovos, a canela, a aguardente de medronho, a gila (que nada mais é que a velha abóbora!), a laranja, o limão, o mel, a erva-doce, etc., etc. Toda esta parafernália dá origem a uma variedade muito aceitável: o doce fino, o morgado, o D. Rodrigo, o arrepiado, o florado e por aí fora, de modo que pedir ao empregado um “queijinho”, por exemplo, não é suficiente para definir o que realmente queremos. Esqueci-me de mencionar a alfarroba que com o seu fortíssimo sabor tem um papel não despiciendo na doçaria algarvia, sendo até habitual ver os turistas a pedir uma fatia de bolo composta pelas “três delícias” (o figo, a amêndoa e a alfarroba).
Confesso que me fascinou o tom fortemente regional destes ingredientes, cujas árvores produtoras desde tempos imemoriais cobrem os terrenos a norte da EN 125 até ao barrocal algarvio. Foi talvez por isso que o António, seguindo pistas que aqui e ali íamos coligindo, me fez abandonar o litoral e fazer rumo ao Norte, até arribarmos a S. Brás de Alportel pois, segundo ele, seria então aí a Fons Mirabilis da doçaria do Sotavento.
Mas não. Afinal não! Podíamos na verdade comprar por ali o que quiséssemos, pois tudo está disponível na cidade, mas a matriz da coisa, o verdadeiro útero, era ainda um pouco mais longe. Havia que marinhar pela mítica N2 até ao Sítio do Tesoureiro para podermos finalmente cumprimentar a D. Fátima Galego, grande artífice e timoneira de mão e vontade firmes, há mais de quarenta anos ao leme da sua casa, Tesouros da Serra!
Foi aí que, com a autorização da proprietária, o António lhe desarrumou as montras e a sala, e a mim me pôs a carregar um espelho pesadíssimo para captar a luz do Sol e trazê-la até aos maravilhosos bolinhos. Sentimo-nos atores ao fotografar esta tradição viva, tanto mais que a proprietária com uma firmeza cheia de generosidade insistia para que provássemos um de cada exemplar dos néctares que íamos fotografando.
Mas o melhor (apenas do ponto de vista intelectual, claro), estava ainda por chegar. Esperava-nos um mergulho na memória, não de dias, nem de anos ou séculos, mas sim de um bom par de milénios, na forma de uma imensa oliveira ali nascida em tempos imemoriais e cuja provecta idade está amplamente certificada. Rodeámos devagar (e o António fotografou) o gigantesco lenho num respeito silencioso. Eu pensava nas conversas que esta árvore milenar poderia ter ouvido (se ouvidos tivesse), nas cenas a que assistira, nas línguas e costumes de que poderia ter sido testemunha taciturna. Talvez algum príncipe mouro ou até um dos nossos primeiros reis se tivessem recolhido um dia à sua sombra. Ou um par de namorados. Ou um homem fatigado de mourejar na terra. Ou… De tantas formas pensei e repensei que me deu a fome. Então levei discretamente a mão ao bolso e comi um dos saborosos queijinhos aí secretamente guardados.
(1) Esta ideia e respectiva execução cabe-me a mim e ao Mestre António Homem Cardoso, da seguinte maneira: enquanto eu escrevinho ele fotografa.