“Eu julgo que a realização perfeita da paisagem marítima grega, tal como os poetas da antiguidade a conceberam, está no troço da costa do Algarve, entre a Ponta do Altar e a ponta da Piedade, isto é, desde a barra de Portimão até ao fecho da baía de Lagos.”1
Há quem prefira visitar o Algarve nos tempos mortos do turismo, sendo que estes se situam entre novembro e março, mais coisa menos coisa. De facto, do ponto de vista da carteira do viajante isso até é mais favorável: por um lado evita empurrões, esperas, preços inflacionados, mas, por outro, não frui da vibração estival da região que em três meses recebe mais visitas do que população tem o País inteiro. Já falámos na crónica anterior do concelho de Albufeira, camisola amarela deste campeonato, que abarbata quase metade dos visitantes. Portimão anda pelo meio do pelotão com dezassete por cento das dormidas. Nada mau! E como se reflete essa atividade na “alma” da cidade? Foi para o poder testemunhar com os meus próprios olhos que, no passado mês de março, me pus a caminho.
“Há que dizer-se das coisas o somenos que elas são”, lá dizia o saudoso Ary. Há que dizer que a viagem Lisboa-Algarve no comboio Alfa é agradavelmente rápida e confortável. Embarcado em Lisboa às oito e trinta, em menos de um piscar de olhos chego a Tunes, uma estação modernizada e funcional e, após uma espera não superior a dez minutos, ponho o pé no comboio regional em direção a Lagos. Carruagem sem pichagens, interior limpo. É pena não haver uma casita de banho, mas, pronto, o caminho também não é longo. Certo? Dois terços dos lugares estão ocupados por estrangeiros. Alguns carregam malas, outros não; presumo que pertençam ao grupo que escolheu passar o frio inverno na nossa suave terra. O plano é desembarcar em Portimão. O comboio vai parando: sai gente, entra gente. Lá parte, de novo: e vai Algoz e Alcantarilha e Porto Barreto: a paisagem é plana e as chuvas recentes emprestam-lhe um verde intenso. Vejo sobreiros, vinhas, pomares. Casas aqui e ali. Alguns prédios. No cimo de um outeiro uma capelinha alveja. Passa-se um cemitério. Depois a explosão violeta da floração dos pomares. Laranjais, laranjais a perder de vista. Estufas imensas. O aspeto harmonioso dos relvados civilizados de campos de golfe. E vai Silves e vai Estômbar e Ferragudo e, finalmente, chega a Portimão.
Menos de meia hora de viagem. Pergunto aos meus botões o que ganhará esta linha em termos de serviço público após a projetada eletrificação? Os meus botões não dizem nada, porque não sabem e eu também não, claro, mas vejamos: a linha que é de via única vai manter-se assim, pelo que o encontro dos comboios se fará apenas nas estações, o que significa que o aumento da velocidade terá grandes restrições. Alguém que tenho como versado nestas coisas, assegurou-me que a Europa impôs a eletrificação por causa da pegada ecológica. Bem, se somos obrigados, calo-me já.
A estação situa-se na parte Norte da cidade de Portimão, bem inserida na malha urbana. Da minha primeira e única visita vai para quarenta anos, recordo uma cacofonia urbana. Prédios com dimensões, formatos, cores e orientações variados, paredes meias com casinhas tradicionais, muitas delas em estado de abandono. Não está muito diferente. Seguramente tem mais prédios altos e o trânsito está mais disciplinado. Existe uma área pedonal com comércio local bastante animado. Em frente da interessante Igreja dos Jesuítas abre-se uma grande praça. Em frente do belo edifício da Câmara existe agora uma praça desafogada. A antiga Lota foi muito bem recuperada e transformada em posto de turismo. Ao longo do rio corre um passeio largo onde os locais passeiam ao fim da tarde de mãos dadas.
A população que vejo nas ruas é maioritariamente de outras raças e línguas. Deslocam-se em pequenos grupos falando entre eles. Esta sim, é uma grande diferença. Há quarenta anos esta realidade não existia. Muita coisa mudou nestas décadas: o envelhecimento populacional e o decréscimo de nascimentos que impõe uma procura de mão de obra estrangeira que faça funcionar a engrenagem turística algarvia, sujeita a abruptos picos sazonais. Na época alta – basicamente de junho a setembro – trabalham. Na época baixa vagueiam pela cidade, rezando para que apareça algo que os alimente e entretenha até ao próximo verão.
Tenho que explicar uma coisa que me esqueci de mencionar: o António Homem Cardoso não viaja comigo desta vez. A razão é que decidimos ilustrar a crónica com um conjunto belíssimo de fotografias tiradas por ele há uns largos anos. Eu devo, portanto, a partir das imagens e das minhas deambulações pela cidade, identificar e descrever a “alma”, o sentido essencial desta urbe e dos seus habitantes. O problema é que não vou poder dispor das dicas que, habitualmente, entre duas fotografias, o Mestre vai debitando ou, por outras palavras, tenho que me desenrascar sozinho.
E assim foi. Munido de um guia e respetivo mapa fornecido pelo posto de turismo (a propósito, o edifício tem umas janelas arabizantes bastante interessantes), passei por alguns dos pontos nele assinalados e que se encontram ao alcance de qualquer passante: Casa de Manuel Teixeira Gomes, Convento do Colégio dos Jesuítas, Igreja Matriz, Largo 1º de Dezembro, Largo da Mó, Museu de Portimão, Palacete Sárreas Garfias/Teatro Municipal, Palácio Bivar, esculturas de João Cutileiro, e mais outras tantas de que não lembro nem nome nem função.
O tempo estava de ananases, como diria o amigo Eça, o que às tantas me obrigou a suspender a jornada e sentar numa cadeira da esplanada do Clube Naval com uma loirinha na mão. Já mais acalmado dos calores pus-me a pensar. Qual será então a alma antiga desta cidade?… O que a define? O que lhe dá identidade? O que lhe marcou a personalidade? O que lhe caracteriza o carácter? Realmente, deste conjunto heterógeno o que escolher?
Ah, António! Um dos teus palpites dar-me-ia agora muito jeito…
Bem, vamos lá ver as possibilidades: o mar seguramente. E também o rio e tudo o que a ele está ligado: os barcos, o pescado, o lazer… Muito da grandeza antiga da Vila Nova de Portimão tem as suas raízes na água salgada. Em primeiríssimo lugar vem a indústria transformadora ligada à pesca. É obrigatório, é “mandatório”, como agora se diz por aí (e mal), falar da indústria conserveira. Já lá iremos, então, com o detalhe adequado.
A cultura em segundo lugar. Não é impunemente que uma terra dá à luz um Presidente da República e ainda para mais escritor e homem de bom gosto: Manuel Teixeira Gomes. Mas Portimão não se fica pela história das palavras. Portimão, por exemplo, utilizou o nome da sua figura maior para intitular um prémio literário. Portimão tem prémios de poesia e iniciativas várias com dinamização sociocultural assinalável o que merece, penso eu, uma menção nestas crónicas se bem que à vol d’oiseau, mas, claro, quem queira aprofundar estes assuntos pode consultar – entre muitos outros – uma monografia de Adriana Nogueira, intitulada A criação literária e o Algarve […]2.
A maçada é que se se me acabou o espaço. Vou ter que esperar pela próxima crónica para dar umas pinceladas no grande quadro da alma portimonense. Mas fica decidido: vou escolher dois temas muitíssimo diferentes. Serão eles: “A Sardinha” e “As Letras”.
(1) Teixeira-Gomes, Manuel, Agosto Azul, in Obras Completas, Lisboa, INCM, 2007.
(2) https://sapientia.ualg.pt/bitstream/10400.1/3074/1/A%20cria%C3%A7%C3%A3o%20liter%C3%A1ria%20e%20o%20Algarve.pdf