Faro é capital de uma região desde sempre considerada um reino: de Portugal e dos Algarves, assim se intitularam os nossos reis, de D. Sancho I a D. Manuel II. Contudo, a cidade gosta de realçar o seu passado romano, daí lhe veio o nome: Ossonoba, ao contrário de outras povoações que valorizam os períodos do domínio muçulmano e da reconquista cristã.
A cidade prosperou ao longo dos séculos devido à sua posição geográfica, ao seu porto seguro e à exploração e comércio de sal e produtos agrícolas, prosperidade várias vezes travada ao longo da sua história por cataclismos naturais e também por violentos saques e pilhagens que continuam gravados na memória da comunidade. De entre tantos episódios possíveis, refiro apenas um levado a cabo no ano de 1487 por uma figura relevante da comunidade judaica, o tipógrafo Samuel Gacon: trata-se da impressão do Pentateuco em hebraico, tornando-o o primeiro livro (talvez o segundo… ainda há dúvidas) impresso em Portugal.
Os alter-ego(1) (2) (3) que me têm acompanhado nesta lenta peregrinação ao longo da via férrea algarvia, o mestre Saramago e o Diego Mesa, interessaram-se muito pelas ruínas romanas de Milreu e pelo Palácio de Estoi, “antigo palácio dos condes de Carvalhal” que, apesar de mal conservado quando o Nobel o visitou se encontrou agora convertido em pousada chique mas, como ambos (ruínas e pousada) ficam longe da estação do comboio não fomos lá, dado que, como se deverão lembrar, o compromisso firmado entre mim e o António Homem Cardoso(4) foi o de seguirmos esta longa linha de caminho de ferro sem desfalecimentos ou tergiversações.
Na verdade, o perspicaz Manuel da Fonseca na sua estadia em Faro interessou-se mais pelas ilhas e praias do que por ruínas e o Diego mandou mesmo a escrita às urtigas e mergulhou de facto nas águas cristalinas do Algarve e isso recorda-me um belíssimo poema de Teresa Rita Lopes que reza assim:
“[…] Em Faro aprendi a amar as ilhas
Todas e quaisquer
Ainda hoje só a breve palavra me comove.”(5)
Faro tem tudo para ser uma bela e grande cidade. Tem essa artéria pulsante chamada comboio que passa mesmo pelo centro, bordejando uma enseada pejada de embarcações com altura limitada à do arco que sustenta a via férrea e que a liga à Ria. Faro tem um aeroporto. Faro tem um bom teatro. Faro tem uma Universidade. Faro tem um grande hospital. Faro tem ao alcance de um agradável passeio de barco uma extensão imensa de areias finas e águas límpidas que Teresa Rita Lopes tão bem sabe descrever:
“[…] Ir à Ilha de Faro era uma aventura
Começávamos a apetecer o mar de longe
Quando finalmente nos recebia nos seus braços possantes
Já o nosso corpo o tinha longamente desejado […]”(6)
Faro tem também a felicidade de um crescimento demográfico sustentado que atrai gente permanente e não apenas as marés cíclicas do turismo. Faro tem tudo isto, mas o turista (ou viajante no nosso caso), que desembarca do comboio depara-se com um plano de cidade confuso e barulhento. É pena.
Nessa ocasião. como acontecera com os meus alter-ego, também fui de início atraído pelas ruas comerciais onde se reza às forças invisíveis do mercado que tudo prometem. Logo à entrada de uma dessas artérias dei de caras com a belíssima fachada do Café Aliança – com projeto de Quintas Júnior – que manteve as suas portas abertas desde 1930 e que agora exibe um cartaz a dizer que está à venda. O que restará depois dessa venda? (aposto que o comprador não o irá reabilitar para a mesma função). Apenas, talvez, uma memória das tertúlias sociais, políticas e literárias nele mantidas pela boa gente da terra e por figuras ligadas à vida social, à política ou às artes, como o desenhador e ilustrador Roberto Nobre ou Samora Barros que tão bem pintou o Algarve, ou ainda por poetas tais como João Lúcio e políticos-artistas como Cândido Guerreiro, entre tantos, tantos outros.
Nos anos 40, alguns dos muitos refugiados que a cidade recebeu também se tornaram assíduos frequentadores do Café Aliança – destaco dentre esses a grande escritora Simone de Beauvoir – dando-lhe o tom cosmopolita que nos nossos dias infelizmente termina. Porque será? que me lembrei agora do triste poema do grande poeta António Ramos Rosa (nascido em Faro) que reza assim:
“[…]As palavras mais nuas
As mais tristes.
As palavras mais pobres
As que dormem
Na sombra dos meus olhos. […]”(7)
Faro é capital do Algarve e isso traz-lhe algumas obrigações mas também múltiplos benefícios. Mais do que em qualquer outro lugar no Algarve (com excepção de Tavira), constata-se uma surpreendente densidade de monumentos onde se expõem obras de arte de boa qualidade. Não vou falar especificamente de nenhum deles embora o merecessem, mas não posso deixar de fazer uma menção elogiosa à Vila Adentro que integra grande parte do núcleo histórico da cidade e que é um percurso turístico obrigatório. Acede-se a essa Vila Adentro por várias portas sendo a mais conhecida a do Arco da Vila escavado na muralha moura, cuja frontaria heteróclita inaugurada em 1812 evoca o santo-filósofo Tomás de Aquino, doutor da Igreja, na sequência de episódios rocambolescos que, encontrando-se descritos em todos os folhetos turísticos, me dispenso de contar.
Nessa entrada, ladeando a torre sineira, é habitual ver-se dois ou três ninhos de cegonha atraídas pela clemência do clima e a bondade das gentes. É imperioso entrar e passear por esse reticulado de ruas contido dentro da muralha moura e é imperioso, também, admirar a vetusta torre sineira da Sé, o alinhamento escrupuloso dos telhados em tesoura da câmara municipal e, last but not the least, dar uma boa olhada às diversas colecções do museu municipal que, para além do lindíssimo claustro de dois andares, nos permite homenagear o deus Oceano, em boa hora recuperado dos pavimentos romanos de Milreu e elevado à categoria de tesouro nacional e que nos espreita, desolado, através dos seus pétreos pixeis coloridos.
No verão, quando anoitece, uma outra vida renasce na cidade, mais terna, mais doce, na mornidão tropical das noites do sotavento. As mãos procuram-se, as gargantas refrescam-se, canta-se, dança-se, assiste-se ao regresso dos pequenos barcos desenhados a fios de luz dourada sobre a escuridão que mansamente invade a grande lagoa, Formosa de seu nome.
O mundo é natural, ridente, quando o verde rompe
Animal olhar.(8)
(1) Manuel da Fonseca, Crónicas Algarvias, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa,1986.
(2) José Saramago, Viagem a Portugal, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa, 1985
(3) Diego Mesa, Viagem ao Algarve, Baseado na Viagem a Portugal de José Saramago, 1ª ed., 2014
(4) António Homem Cardoso, fotógrafo e amigo, que me acompanha neste trajeto do Algarve Costa-a-Costa.
(5) Teresa Rita Lopes, in O Sul dos meus sonhos, Viajantes, Escritores e Poetas, Retratos do Algarve, ed. Colibri, CELL/UALG,, 2009, p. 38.
(6) Lopes, op. cit., p. 38.
(7) António Ramos Rosa, poeta farense, citado em Viajantes, Escritores e Poetas, Retratos do Algarve, ed. Colibri, CELL/UALG, 2009, p 113.
(8) Rosa, op. cit. , p 115.