Na crónica anterior1 o leitor assistiu aos meus insucessos nas visitas a Monte Gordo, Castro Marim e Cacela, pois as estações ferroviárias ficavam sempre demasiado longe do objectivo “turístico” pretendido e – conforme combinado com o António Homem Cardoso – devemos fazer o percurso “Algarve-Costa-a-Costa” apenas de comboio. Se obedecesse um itinerário linear teria seguido para Conceição, Porta Nova, Tavira e Luz por esta ordem, mas dei um salto – não por desinteresse, bem pelo contrário – e desembarquei directamente em Olhão.
A linha férrea atravessa a cidade, como todas aliás deviam fazer para actuar como factor de progresso. Olhão soube aproveitar a proximidade da via férrea para se transformar na próspera cidade que é hoje. A estação está bem localizada e conservada. Não sou especialista de coisa nenhuma senão deste escrevinhar, mas penso que nesta era em que ainda não perdemos a esperança de salvar o Planeta, deveríamos apoiar estes transportes com saudável pegada ecológica2.
É fácil, a partir da estação e virando a esquina do tribunal, encontrar a Avenida da República. Corre-lhe a todo o comprimento um larguíssimo passeio central e está animada do mais diversificado comércio. É na verdade a rua de uma povoação desenvolvida graças à bravura dos seus habitantes e a uma história de heroísmo, gravada na pedra para que conste. No comboio vinha a pensar de mim para mim: A pergunta fundamental a cada cidade que visito pela primeira vez devia ser algo como isto: “Que Alma te anima, cidade?, que Alma te dá sustento e te abre os caminhos do futuro?” E depois devia ficar à escuta.
João Lúcio (1880-1918) foi um poeta ceifado na juventude por uma Covid qualquer. Era natural de Olhão, precisamente, onde também morreu, mas não foi só olhanense, nem só algarvio. Foi um cidadão do mundo que como poucos intuía a invisível alma das coisas. Num lindo poema intitulado “Descendo” o poeta diz:
“Pela escada que desce ao fundo mist’rioso
De tudo aquilo que a vista não alcança […]
Por essa escada irei, no silêncio das loisas,[…]
Até poder sentir o coração das coisas […]
Até que a treva seja uma luz para mim”3
Talvez essa visão apurada lhe tenha permitido trazer-nos um Algarve oculto no mais profundo do espírito dos seus povos, auxiliada por uma apurada sensibilidade estética (talvez não seja um mero acaso ter nascido sobrinho do pintor Henrique Pousão).
“A Cor, filha da Luz, é uma língua em tons
Que fala, sem rumor, à curva da retina…
Como há para o ouvido a palavra e os sons,
Nasceu para o olhar esta harmonia fina.”4
Bom, vinha eu então pensando na questão da “alma olhanense” quando – nem de propósito – os meus olhos pousaram num compridíssimo cartaz que afirmava isto: “Olhão Tem Alma”. Parecia responder à minha demanda: o cartaz simulava um cenário romântico: casalinhos a passear cães à trela; jovens correndo; jovens andando de bicicleta; jovens falando ao telemóvel, alguns fotografando. Turismo afinal. Apenas a descontracção estival, o bem-estar do dolce farniente.
Não. A alma de Olhão não pode ser só isto. Onde se esconderá a sua outra alma? No extremo do mesmo cartaz vejo uma barca com dois mastros, incongruente naquele pano de fundo. Ah! Deve ser a “Bom Sucesso”, a que foi ao Brasil levar ao Rei D. João VI a notícia da sublevação contra os franceses ocupantes. Façanha heróica seguramente apoiada numa “alma” forte, mas será que com isto se que resume a alma de Olhão?
Continuei a minha deambulação pela Avenida da República. Um edifício vizinho da Capela de Nossa Senhora dos Aflitos chamou-me a atenção. Tratava-se da antiga Sociedade Recreativa Olhanense renascida com o nome de Associação Cultural Re Criativa República 14. Entrei, para concluir que está de parabéns! Instalações acolhedoras, jardins agradáveis, esplanadas envoltas num silencioso calor a destilar um prazeroso perfume a trópicos. Tive sorte, porque a avaliar pelo programa exposto, alguns dias deverão ser bastante mais movimentados que hoje.
Mas quem melhor do que o poeta João Lúcio nos poderia ajudar a dar o tom apropriado a estas emoções, a encontrar para elas o mot juste? Escreveu ele:
“Oh meu ardente Algarve impressionista e mole,
Meu lindo preguiçoso adormecido ao sol […]”5
Este interregno todavia não me fez esquecer a busca pelas outras partes da alma de Olhão. Foi preciso gastar meias-solas para começar a ter dela um vislumbre quando passei pela zona industrial. Pensava (erradamente) que a indústria conserveira tinha morrido no Algarve, mas não. Essa indústria secular sobrevive aqui, ou renasceu, e o olhanense tem dela a perspectiva certa, focada na importância do trabalho para o bem-estar e o progresso. Uma estátua representando uma operária conserveira, inaugurada há pouco mais de um ano, é uma recente e merecida homenagem a quem trabalha. Posso então arriscar-me a dizer que um dos pilares da alma olhanense é o “Trabalho”. Mas não se fica por aqui. O título de Vila da Restauração foi conseguido graças a um carácter forte que não se verga às ordens de ninguém, nem a estrangeiros, nem a nobres nem a padres e assim se desvenda o segundo pilar dessa alma forte: a “Independência”. E isto sem esquecer o carácter naturalmente solidário aprendido nas rudes fainas do mar. Eis pois o meu humilde contributo, espero que verdadeiro, para a caracterização da Alma Olhanense.
O Manuel da Fonseca6 teimou em ver as açoteias de Olhão do alto da Igreja da Nossa Senhora do Rosário pois – segundo ele – de nenhum outro local poderia ter a visão da torrente de brancos e arestas que sobem da terra com a força de um quadro de Picasso. Foi há cinquenta anos que ele realizou esta visita pelo que eu quis ver de perto essas casas e as suas formas originais, não a partir do ar – como ele – mas com os pés firmados na terra.
Passeei então pelos bairros da Barreta e do Levante que se erguem junto à Ria e que foram em tempos toscas barracas de pescadores cobertas a colmo e depois evoluíram para alvenarias de taipa e, finalmente, para estruturas mais condizentes com o século e os ditames de um turismo que se apaixonou por estes bairros “típicos”.
Chama-se típico, normalmente, a algo que faz recordar comunidades com vidas modestas e que nasceram por razões familiares e solidárias. O turismo porém modificou tudo. Para melhor ou para pior? Depende… Como diz o povo, “não se pode ter Sol na eira e chuva no nabal”. O turismo traz riqueza por um lado e adulteração por outro e o equilíbrio entre ambos tarda em ser encontrado.
Estava eu então a arrastar os pés pelo labiríntico Bairro da Barreta: ruas estreitas, obras em curso, aqui e ali. Algumas pareciam respeitar a alma do sítio, outras nem por isso. Claramente se via que os novos ocupantes tinham modificado a vida do bairro. Ainda se vêem alguns antigos habitantes mas os alojamentos locais surgem em cada esquina. O turista apaixonou-se pela Barreta, mas não estou certo que a Barreta se tenha apaixonado pelo turista, mas isso é uma outra cartilha.
Num larguinho sou surpreendido por uma pequena estátua em metal: um miúdo de braços amuadamente cruzados sobre o peito. Ao lado uma placa explicativa. É “O Largo do Carola” diz uma placa camarária. Constato que a figura se apoia numa lenda ingénua e faz parte de uma forma interessante de fazer turismo adoptada na cidade de Olhão, com a divulgação de lendas locais e a criação de percursos turísticos baseados nessa e noutras pequenas histórias.
Entretanto uma frágil senhora apoiada na sua bengala foi-se chegando. “A senhora mora aqui?”, pergunto. Pois que morava. E vá de contar a história do larguinho. Ná, não era Largo do Carola coisa nenhuma. Era Largo da Palmeira, pois sempre tinha havido ali uma palmeira. Um dia porém tinham vindo uns homens da câmara para a arrancar e levar embora. Diziam que estava muito doente mas era mentira. O caso é que da primeira vez que o homem tentou arrancá-la o equipamento não funcionou. Veio no dia seguinte e no outro ainda e de todas as vezes a máquina se recusou a trabalhar. “Ela não queria ser cortada”, conclui a senhora. Mas os maldosos homens foram teimosos e numa triste manhã o Largo acordou para um tronco selvaticamente decepado, e fora esse o triste fim do Largo da Palmeira, “o maior largo da Barreta”.
E assim falou o Povo.
(1) Caro leitor, terá mesmo que dar uma vista de olhos às crónicas anteriores onde explico a origem e objectivos deste nosso projecto.
(2) Espera-se que a electrificação e modernização da linha do Algarve avance com rapidez.
(3) Viajantes, Escritores e Poetas, Retratos do Algarve, ed. Colibri, CELL/UALG, 2009, p 104.
(4) Viajantes, Escritores e Poetas, Retratos do Algarve, ed. Colibri, CELL/UALG, 2009, p 106.
(5) João Lúcio, O Meu Algarve, in Poesias completas, INCM, pp. 112-113.
(6) Manuel da Fonseca, Crónicas Algarvias, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa,1986.
* O autor não escreve segundo o acordo ortográfico