Esta é uma triste ocasião para escrever sobre algo mais que o horror pelo desrespeito pela vida humana e demais valores associados às sociedade justas e livres, a que temos assistido nos últimos dias1. Apesar desta lamentável circunstância, eu e o António Homem Cardoso decidimos manter o nosso plano desta travessia falada pelo Algarve – de costa-a-costa – seguindo sempre que possível a via férrea que serve esta vastíssima região (com algumas falhas de que já falámos anteriormente).
Na crónica sobre Olhão – lembro-me bem -, utilizei o método de perguntar à própria cidade como descreveria a sua alma. Talvez nesse caso – e por culpa do cronista – a resposta não tenha sido perfeita, mas a verdade é que qualquer que seja a abordagem a uma realidade plurifacetada, esta sempre se torna necessária se bem que normalmente insuficiente. Sei, sabemos, que as terras, todas as terras, têm as suas dinâmicas culturais ancoradas em episódios históricos com os quais se conformam e identificam, e muitas vezes esses episódios tornam-se verdadeiros mitos nacionais (vide a epopeia portuguesa dos descobrimentos), mais significativos que uma abordagem mais científica do passado.
Ao entrar na rotunda de Castro Marim, vindo de Vila Real de Santo António, surge-nos a interessante figura de um cavaleiro medieval, armado de lança e escudo, protegido com um elmo refulgente, toda feita de arame acobreado. É uma imagem bélica mas tranquila, como deveriam todas ser, quando o poderio militar é utilizado não como agressão mas sim como um factor de dissuasão das violências de todos os quadrantes. Quando o António fotografou a estátua lembro-me de termos andado algum tempo à sua volta procurando o melhor ângulo, sem nos apercebermos de que, disfarçado em arte, nos preparávamos para celebrar a guerra. Hoje, olhando-a, arrepio-me todo, pois esta parece-me uma prova mais de que a alma das comunidades humanas está quase invariavelmente ligada a ódios, como se o verdadeiro cimento dos povos fosse afinal a violência contra o Outro.
Vejamos então o que nos diz o nosso cavaleiro dourado. No topo da sua longa lança um pendão quadrangular tem inscrita uma cruz.
Quem não saberá o que significa essa cruz? Claro, é o símbolo da Ordem de Cristo (herdeira da cruz da Ordem do Templo a quem se deve a conquista de Castro Marim em 1242), e cuja primeira instalação no segundo decénio do século catorze, foi exactamente aí, no Castelo Velho. Nas paredes da cerca do Castelo, para quem se queira instruir, escreve-se com imagens a história dessa cruz que, adaptação após adaptação, se transformou na cruz que, por exemplo, o nosso navio-escola Sagres ostenta nas suas velas desfraldadas. Felizmente que a missão do navio tem sido a de, dando a conhecer Portugal, espalhar por esse mundo fora apenas a concórdia e a cultura.
Mas voltemos à estátua. Era então religioso o nosso cavaleiro e sabe-se que naqueles tempos a Guerra e a Cristandade andavam de mãos dadas. O Castelo Velho e os seus torreões seria o seu poiso natural. Do topo de uma rara colina podia assim o frei-cavaleiro projectar o olhar para os arredores à cata de inimigos: no Sapal, no Guadiana e, muito ao longe, em Ayamonte, as mais das vezes mais amiga que inimiga. Eis então uma parte da “Alma” de Castro Marim assim desnudada. Será que adivinhámos desta vez?
Castro Marim foi sobretudo uma praça forte que após o acordo de Badajoz2 se tornou uma sentinela fronteiriça no sistema defensivo português, com os seus altos e baixos, as suas construções e reconstruções. Teve pequenos papéis na Reconquista, e uma ou outra escaramuça nas guerras da Restauração e da Sucessão, mas, fundamentalmente, Castro Marim foi ao longo da sua história e até ao século dezanove um couto que serviu de abrigo de homiziados que ali cumpriam penas de degredo e que se ocupavam nas actividades que os locais não apreciavam, como o trabalho nas salinas ou o serviço no exército e, talvez também e mais que tudo, no contrabando de víveres, peixe e sal para os insaciáveis vizinhos do outro lado do rio.
Como observa Diego Mesa acerca de Castro Marim3, “[…] Esta pequena vila é mais aldeia que cidade (apenas uma centena de ruas de casas baixas à volta do castelo e da igreja)”. Mas, se a capital do concelho é uma pequena e tranquila vila, o resto do concelho é extenso, embora na sua maior parte pouco atrativa para o turismo moderno. A sua extensa frente de rio está contaminada pelo Sapal. O que lhe resta para atrair turistas é um pequeno rasgão que, dividindo em dois o concelho de Vila Real de Santo António, lhe permite um acesso ao Eldorado da faixa costeira.
O Sapal, contudo, permite ao concelho alguma actividade económica no campo da extração do sal de qualidade (a muito apreciada flor-de-sal ) e da aquacultura. A parte do concelho que sobe para o barrocal e para serra é quase desértica e com atividades pontuais no setor primário, quase ao nível da auto-subsistência.
A autarquia esforça-se para não se deixar acantonar por essa escassez de uma história ou de um presente que justifique os seus pergaminhos, e desenvolve uma intervenção cultural interessante na conservação das memórias do povo humilde e trabalhador de que o programa “100 memórias de Castro Marim” é um bom exemplo.
Enfim, não há comunidade humana que não mereça a sua epopeia e Castro Marim não será exceção, e a pequenez deste texto não será pois da responsabilidade da terra mas do cronista canhestro que sobre ela reflete.
(1) Escrevo no dia 8 de Março, duas semanas após o início da invasão da Ucrânia.
(2) Em 1267 os reinos de Portugal e Castela firmaram um tratado que grosso modo concedia a Portugal os territórios algarvios na margem direita do rio Guadiana.
(3) Diego Mesa, Viagem ao Algarve, Baseado na Viagem a Portugal de José Saramago, 1ª ed., 2014, p 17