“As praças fortes foram conquistadas
Por seu poder e foram sitiadas
As cidades do mar pela riqueza
Porém Cacela
Foi desejada só pela beleza.”1
Beleza intemporal. Eis a primeira impressão quando ao chegar a Cacela olho das suas antigas muralhas as águas que a cercam: a enfeitiçante atração de algo muito belo a transformar-se em desejo, em volúpia de pertencer, de ficar para sempre a contemplar, a desejar. Não é porém universal essa poética sensação de completude. Há quem, mais terra-a-terra, apenas tenha avistado uma velha povoação que lentamente se desmoronava.
“A mais ou menos doze quilómetros de distância de Vila Real de Santo António, carcomida e escalavrada pelo mar, definha de dia em dia a antiga vila de Cacela – residência que foi de D. Paio Peres Correia, que dali investiu a vingar a traição dos mouros de Tavira, tomando-lhes a cidade.”2
Indiferentes à deriva histórica e aos feitos militares de Cacela – mais numa onda poética que histórica -, eu e o António3, sentados com vagar num banco adossado à velha igreja, contemplamos o que de facto ali mais impressiona: o mar, a ria, os labirintos que a água lenta desenha nas areias… A máquina fotográfica está em riscos de lhe escorregar das mãos, dada a sua evidente impotência perante a tão nobre, clara e doce presença das águas que em silêncio se deixam admirar.
“Não andas tu à procura da cultura?”, perguntou de repente o António na sua voz pausada, sobressaltando-me, “pois aqui a tens; a cultura é isto, são as coisas, ou melhor, uma certa forma de as olhar”.
Uma forma de olhar as coisas, diz ele. Mas será isso cultura ou apenas sensibilidade ao estético nas coisas? “Dizer que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida”4. A arte é vida! Pois bem, muito obrigado aos muitos poetas que legaram a sua escrita aos muros límpidos de Cacela, e a tantos outros que num qualquer momento a tenham visto e amado.
“O Eugénio de Andrade dizia que a Sophia gostava muito de gatos”, declara então o António, que tinha andado pelos recantos sempre muito atarefado com a sua máquina, “Ora vê lá isto”, e mostra-me no pequeno visor um gato malhado em observação atenta, empoleirado nas toscas muralhas de Cacela, sobre um cenário de águas e terras misturadas em pacíficos abraços, “é uma homenagem minha a ela, à poesia e à beleza de existir”.
“Cacela Velha é um poema de poucos versos”, escreveu noutro tempo Teresa Rita Lopes, “quatro ruas desaguando num largo ao abrigo das muralhas, a igreja, o cemitério logo ali. Os mortos dão de vaia aos vivos. Aluado, o mar procura a terra. Seus frutos esguicham sumo sobre os das árvores, caídos no chão.”5
Sim, a realidade física de Cacela é pouco mais que isso, talvez por ter sido espoliada das suas prerrogativas civis e religiosas no final do século XVIII, após a fundação da Vila Real de Santo António. Talvez por essa razão (e outras…), parou no tempo, o que não a impediu, por exemplo, de ser a praia algarvia onde primeiro os exércitos liberais pousaram a biqueira das suas botas: “No dia 24 de junho de 1833 foi o lugar de desembarque do duque da Terceira com uma força de 2500 homens a cujo valor se deve a conquista do Algarve dentro de seis dias.”6
Do que ninguém, todavia, a poderá jamais despojar é da sua posição geográfica, da nobre face que oferece a um oceano pacificado por um estreito cordão dunar que arranca do Levante e se perde para poente, numa sucessão onírica de matos e areias, construindo um cenário de uma sublime completude. É triste, porém, e um pouco nostálgico, presenciar o digno silêncio de uma povoação arredada da história não por carência de amantes mas por falta de defensores que a tivessem imposto ao mundo que a expulsara.
Ainda sentado no mesmo banco de memórias, sou invadido por um prazer melancólico e delicado que tem a ver com a infância, mas também com a velhice, ou melhor, com o acerto de contas que habitualmente precede o fim. O acervo de todas as coisas que deveria ter feito mas por falta de tempo de imaginação ou de ocasião não fiz. Uma dessas seria o de viver junto ao mar para inspirar de cada gota salgada o perfume dos grandes momentos, das grandes celebrações cósmicas que rasgam os oceanos em lendas e em danças.
Contemplando a imensidão que cobre de azul o grande Sul, penso que encontrei a pedra angular que completa o conjunto perfeito e efémero que constitui uma vida. Esta emoção deliciosa é uma paga que excede em muito o esforço de num único relance aprisionar o mar, a terra, o passado e o presente (e talvez um poucochinho de futuro), a dificuldade de tentar ao mesmo tempo amar e dominar a vida e as suas variadas formas.
Em Cacela, melhor do que em qualquer outro local, apercebemo-nos do véu que esconde uma parte invisível das nossas vidas e que só por intercessão dos deuses poderá ser levantado. Por exemplo, o véu sobre esse ignoto e vastíssimo território da infância onde se enraízam as dores e o júbilo das coisas entrevistas e logo esquecidas. Por isso mesmo, muitos séculos atrás, Ibn Darraj, poeta natural de Cacela, pedia o seguinte a quem tem mais poder que um simples homem: “Diz à Primavera: estende as nuvens do teu manto e abre os teus véus sobre os lugares onde brinquei na minha infância.”
Cacela não é só um local que desde tempos imemoriais e até hoje atrai poetas e pensadores. Cacela é uma das formas de que a poesia se pode revestir. Ela é por pleno direito poesia, e os poetas que a cantam são apenas seus émulos, Ulisses, tentando fruir o belo canto inebriante das sereias mas, ao mesmo tempo, sobreviver a essa prova.
(1) Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto, 4ª ed., Moraes Editores, Lisboa, 1972, p. 15
(2) Joaquim Ferreira Moutinho, O Algarve, Tipografia Elzeviriana, Porto, 1890, p. 65
(3) Mestre António Homem Cardoso, fotógrafo.
(4) Sophia, op. cit., posfácio, p. 75.
(5) Teresa Rita Lopes, O Sul dos meus sonhos, in Viajantes, Escritores e Poetas, Retratos do Algarve, ed. Colibri, CELL/UALG, 2009, pp. 32-33.
(6) Joaquim Ferreira Moutinho, O Algarve, Tipografia Elzeviriana, Porto, 1890, p. 65