O poeta algarvio Nuno Júdice, que morreu no domingo, em Lisboa, aos 74 anos, dizia que o mais relevante na sua poesia é a imagem, a possibilidade de ver e dar a ver, “o que fica nas palavras daquilo que se viveu”.
A expressão vem sob a forma de dúvida de um dos seus poemas, “Amor”, e traz a resposta do que fica perante a hipótese de tudo o que é essencial, tudo o que se amou e viveu poder resumir em palavras: “Um pó de sílabas, o ritmo pobre da gramática, rimas sem nexo…”
O seu mais recente livro de poemas, “Uma Colheita de Silêncios”, foi publicado há um ano. Fala do mundo em volta, multiplicando referências históricas, assim como à arte e à literatura, para abordar esses “silêncios” vindos da passagem do tempo, e que são tudo ou quase tudo. Para Nuno Júdice, “escrever o poema é aceder a um tempo primordial”, defendeu o poeta e ensaísta António Carlos Cortez, numa análise à obra do escritor publicada no Jornal de Letras, Artes e Ideias (JL), em 09 de março de 2022, quando se assinalavam os 50 anos sobre a publicação do primeiro livro do autor de “Meditação sobre Ruínas”.
“Talvez nenhum outro poeta do nosso tempo tenha, como Nuno Júdice, assumido de forma tão radical o fascínio de esculpir, em formas fixas ou livres, os mitos, as paixões e as contradições de uma Europa e de um mundo que, sob as ruínas, o poeta reedifica numa subversão total”, defendeu António Carlos Cortez no mesmo texto. Nuno Júdice nasceu em 29 de abril de 1949, na Mexilhoeira Grande, Portimão, distrito de Faro. Formou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e foi, até 2015, professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, instituição onde se doutorou em 1989 com a tese “O Espaço do Conto no Texto Medieval”.
Poeta, ficcionista, tradutor, dramaturgo, a sua obra literária soma perto de 80 títulos, que se estendem ao conto, ao romance e ao ensaio. Estreou-se com o livro de poesia “A Noção de Poema”, em 1972, a que se seguiriam, ao ritmo de um por ano, “O Pavão Sonoro”, “Crítica Doméstica dos Paralelepípedos” e “As Inumeráveis Águas”, já em 1974, ainda antes de Abril. O ano de 1972 foi de “muitas mudanças pessoais”, como recordou 50 anos mais tarde, em entrevista ao Diário de Notícias (DN): foi o ano em que se casou, em que nasceu a primeira filha, em que tentou o jornalismo na revista Vida Mundial e em que acabou por optar pelo ensino, primeiro na antiga Escola Industrial Machado de Castro e só depois, cinco anos mais tarde, no ensino superior.
Foi também o ano em que foi permitida a criação da Associação Portuguesa de Escritores, a que se juntou, depois do encerramento pela ditadura da sua antecessora, a Sociedade Portuguesa de Escritores, em 1965. Nuno Júdice esteve sempre atento aos movimentos do mundo.
Na entrevista de 2022 ao DN, posterior à invasão da Ucrânia pela Rússia, lembrava que “bastava pensar no que aconteceu na Síria para sabermos que o respeito pela vida humana é algo que não faz parte de um mundo que governa pela força”. Mas lembrava também a guerra colonial para a qual se arriscava a ser chamado, as eleições de partido único anteriores ao 25 de Abril, e este dia em si, em que “ao ver as pessoas na rua, sem medo”, ainda antes da rendição do governo, como disse ao DN, percebeu que “não haveria retrocesso possível”.
“Aquilo que temos para dizer precisa de tempo para encontrar o tom certo”, disse Nuno Júdice nesta entrevista.
Abril deu-lhe a possibilidade de falar da sua aldeia, no tempo da ditadura, da miséria dessas pequenas povoações distantes, mas na sua linguagem poética própria, sem qualquer fundamento no neorrealismo anterior. Os tempos da faculdade, na década de 1960, surgem em “Plâncton”, a estreia no romance, que aconteceria em 1981, após a ficção de “Última Palavra: Sim”, de 1977.
Viriam depois títulos como “A Manta Religiosa”, “O Tesouro da Rainha de Sabá”, “Vésperas de Sombra”, “A Ideia do Amor e Outros contos”, “O Enigma de Salomé”, “A Conspiração Cellamare” e “O Café de Lenine”, numa sequência de quase duas dezenas de obras de ficção publicadas ao longo das últimas quatro décadas. Para o palco escreveu “Antero – Vila do Conde”, “Flores de Estufa”, “O Peso das Razões” e “Teatro”. Também traduziu, como aconteceu com as peças de Corneille “Sertório” e “A Ilusão Cómica”.
Na entrevista ao DN, falou da importância da leitura e da tradução, no que chamou a sua aprendizagem. Citou Jack Kerouac e Allen Ginsberg, na década de 1960, mas a atenção prende-se em T.S. Eliot e Ezra Pound, “aquela geração dos imagistas”, autores que lhe permitiram perceber como a imagem seria o mais relevante para a sua poesia. Traduziu Emily Dickinson, que, sem esquecer Camilo Pessanha, Álvaro de Campos e ainda John Ashbery e a sua relação com a pintura.
A sua poesia foi constantemente premiada. “O Mecanismo Romântico da Fragmentação” deu-lhe o Prémio Pablo Neruda, “Lira de Líquen”, o Prémio PEN Club. O Prémio D. Diniz da Casa de Mateus veio com “As Regras da Perspetiva”, uma das obras maiores na viragem para a década de 1990.
“Meditação sobre Ruínas”, que culmina um percurso de livros distinguidos nos anos de 1980 e 1990 – “De Enumeração das Sombras” e “Um Canto na Espessura do Tempo” -, recebeu o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores e o Prémio Literário Eça de Queiroz da Cidade de Lisboa, além de ter sido finalista do Prémio Europeu de Literatura. Viriam ainda os prémios da Associação Internacional de Críticos Literários (“Rimas e Contas”), o Grande Prémio de Literatura dst (“Geometria variável”) e aqueles que distinguiram a sua carreira literária, do Prémio Ibero-Americano Rainha Sofia de Espanha, em 2013, ao Prémio Internacional de Poesia Camaiore, de Itália, em 2017, e ao Prémio Rosalía de Castro do Centro PEN Galiza, em 2018. A par da produção literária e do ensino, Nuno Júdice dirigiu a revista literária Tabacaria (1996-2009), organizou a Semana Europeia da Poesia, no âmbito da Lisboa’94 – Capital Europeia da Cultura, foi comissário para a área da Literatura da representação portuguesa na 49.ª Feira do Livro de Frankfurt, em 1997, dirigiu a Revista Colóquio-Letras, da Fundação Calouste Gulbenkian.
Desempenhou ainda funções como conselheiro cultural da Embaixada de Portugal em Paris (1997-2004) e foi diretor do Instituto Camões na capital francesa.
Em 2022, quando assinalava meio século de vida literária e publicou “50 Anos de Poesia Antologia Pessoal (1972-2022)”, confessava na entrevista ao DN sentir-se mais algarvio do que lisboeta, por se achar um pouco fora do seu espaço na capital portuguesa. “Não direi exilado pois é a minha cidade, mas o meu lugar é de facto no Algarve”, afirmou então, confessando, porém, que Lisboa tinha “uma rival”: “Eu faço parte de uma geração para a qual Paris era o centro do mundo”. Nuno Júdice é também um dos autores no centro da exposição inaugurada no passado dia 21 pelo Museu do Louvre, em Paris, “Poésie du Louvre”, que ficará patente até 21 de setembro, com textos sobre o museu, já publicados em livro.
Em “Um Canto na Espessura dos Textos – Leituras da poesia de Nuno Júdice”, volume de ensaios dedicados a Nuno Júdice que chegou às livrarias no passado dia 08, António Carlos Cortez faz “uma homenagem à obra de um dos maiores poetas portugueses”.
No ensaio publicado no JL, Cortez fala do despojamento, do poder de contenção, da capacidade de a escrita de Júdice atingir o essencial, com as suas imagens, o seu poder descritivo. Não se trata de “absolutizar a limpidez em nome duma qualquer poesia pura”, alerta Cortez. “Como nenhum outro”, Nuno Júdice “sobrecarrega, nesse processo de purificação, o texto dum pensamento que, posto na página, ao passar pela superfície do real, o transforma, o embacia para dar a ver a outra realidade que a poesia cria”.
E cita o poeta: “Se eu quisesse falar das tarefas da poesia/ talvez começasse por compará-la com o que/ se tem de fazer a uma janela quando os vidros/ estão sujos de de um pó de muitos anos de vento/ e abandono. Então passo o pano da metáfora/ por esse vidro, mas em vez de o limpar ainda/ acrescento ao pó as imagens que vinham agarradas ao pano”.
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