CIVISMO, PROCURA-SE
O “civis” (cidadão) pode optar no limite da sua vontade e das suas possibilidades por uma vida de eremita, longe de tudo e de todos, fechado na sua gruta mental e paleontológica, indiferente ao passar do tempo, à vida e à morte, à guerra e à paz, aos avanços da modernidade e aos retrocessos da civilização cuja carruagem abandonou em andamento. Porém, regra geral, vive-se em comunidade, uns melhor integrados, outros pior, onde há quem mande e há quem obedeça ou não, a um conjunto de regras escritas nas leis, regulamentos, posturas municipais e até de simples costumes passados oralmente de geração em geração, mesmo para quem não acredita na preexistência de uma ordem divina colada à essência das coisas.
O ser humano é, por natureza, conflitual, transportador de um conjunto de atributos de carácter propensos ao choque com os seus congéneres, colegas, vizinhos, familiares até. A cobiça, a vaidade, a ambição, a soberba, a ira, a luxúria, a gula ou até a preguiça de cada qual carecem de moderação sob pena de a vida colectiva ser o inferno em que, em muitos momentos e lugares, se transformou. É daqui que deriva o civismo, como um conjunto de deveres que cada cidadão deveria respeitar buscando a harmonia e o bem-estar de todos. A liberdade de cada um encontra o seu limite quando interfere na liberdade do outro.
Está-se em nível de intolerância máxima. (…) Nunca haverá polícias nem tribunais suficientes para punir aquilo que a falta de civismo não preveniu. Estamos entregues aos bichos, por nossa conta e risco
A transmissão dos valores éticos inerentes ao civismo deve ter como objectivo tornar os cidadãos mais responsáveis e solidários, exercendo os seus direitos e deveres no diálogo e no respeito para com os outros, com espírito democrático, pluralista, sem amputação do espírito crítico ou da criatividade. Não deixa de ser perturbadora esta sensação (certeza?) de que aqui à nossa porta, no Algarve, como no Portugal inteiro, na Europa ou no Mundo, por arrasto ou tracção, o civismo encontra-se em marcha atrás acelerada nesta última década, o que se manifesta dos mais pequenos pormenores ou incidentes, até à fome de guerra que, sempre tendo existido desde tempos imemoriais, parece regressada em força e para ficar.
A título meramente exemplificativo e aleatório, a degradação e o desrespeito pelas tais normas de convivência começa na forma como se baralha o uso da separação dos resíduos sólidos urbanos. Há quem jogue papel no contentor das latas, plásticos no vidrão, vidro no papelão, sopa no pilhão, e quem pura e simplesmente deposite o lixo no chão ao lado dos recipientes para simplificar a canalhice. A sementeira de papéis diversos, máscaras covid, garrafas e latas vazias, “beatas” da cigarrada, espalhada por calçadas, pavimentos e bermas da estrada está de volta pujante como nunca. A grafitagem de paredes, sinais de trânsito e pontes está imparável e impune, sem lei nem roque. A propaganda comercial, política ou sindical não se contenta com os tempos e os espaços que a lei confere. É um atentado paisagístico permanente e, pelos vistos, perpétuo, em nome da democracia.
A circulação automóvel é uma guerra civil quotidiana. O desrespeito, os atropelos, as ultrapassagens, o estacionamento em cima de faixas para peões ou em segunda fila, a utilização abusiva dos corredores para transportes públicos, as chico-espertices de quem não respeita as filas do congestionamento e das horas de ponta são o pão nosso de cada dia. Cuidado! Se alguém chama alguém à razão, chovem insultos e ameaças, daqui à agressão é um passo curto, pode acabar em tiro ou facada fatal.
Os nervos parecem descomandados à flor da pele, os ânimos andam exaltados. Está-se em nível de intolerância máxima. Uma simples questiúncula de trânsito pode transformar-se numa questão de vida ou de morte num ápice. Nunca haverá polícias nem tribunais suficientes para punir aquilo que a falta de civismo não preveniu. Estamos entregues aos bichos, por nossa conta e risco. Recuperou-se a prática do escarro no chão, normalizada pelo exemplo lamentável dos artistas da bola que cospem a cada dez segundos para o relvado que pisam e onde se rebolam abundantemente, num espectáculo de doses maciças que entra diariamente nas nossas casas através da televisão. Desfiar situações de falta de civismo poderia continuar em linhas sem fim que o jornal não consente. A tudo acresce o lado malévolo da Internet. O anonimato de que se cobrem muitos dos seus intervenientes leva a comportamentos anti-sociais, agressões e difamações sem pena.
As injustiças que se multiplicam e agravam dão gás a discursos e textos inflamados, impregnados de ódio e maldade. E, no fundo, este ecossistema das redes sociais alimenta-se do dinheiro da publicidade, e esta baseia-se na capacidade de chamar a atenção, de coleccionar laiques e seguidores aos milhões, pelo que são os que revelam maior capacidade para o barulho e para o escândalo os grandes vencedores. Perante a derrota do civismo, a classe política continua entretida com os seus jogos florais. Algum político se preocupa com isto?
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia