A nova ponte para a Ilha de Faro, agora em fase de construção, será muito provavelmente a emenda que arruinará o soneto. A ponte não resolverá o problema do trânsito na ilha, antes pelo contrário, vai piorá-lo e, com ele, as vidas de quem procura esta ilha pelas suas praias, trabalho ou casa.
Em 2014 ficou conhecido o projeto vencedor para a nova ponte. Este rapidamente se destacou por perpetuar aquilo que muitas pessoas consideravam o maior problema da ilha: uma ponte com uma via de acesso automóvel apenas, com passagem alternada dos dois sentidos. Na verdade, o projeto considerava uma segunda via de circulação, que seria dedicada à mobilidade leve e que acolheria o trânsito automóvel apenas em caso de emergência. Contudo, mais tarde, a autarquia veio emendar a mão e admitir que esta ponte, afinal, teria duas vias de circulação automóvel em permanência.
Pode ser contraintuitivo, mas colocar duas vias na ponte vai piorar o trânsito. Atualmente o estrangulamento do fluxo que a ponte cria funciona como um guardião da ilha
Para alguém do setor da mobilidade, é evidente que o problema da Ilha de Faro nunca foi a ponte. É verdade, sim, que uma via com passagem alternada provoca trânsito nos dois sentidos, mas esta característica tem funcionado habilmente como atenuador do real problema da ilha, que consiste num número excessivo de carros para os lugares de estacionamento de que a ilha dispõe.
Saberá que isto é verdade quem já, como eu o fiz tantas vezes, conduziu para a ilha numa tarde de verão e esperou 20 minutos no trânsito da ponte, apenas para depois dar duas voltas à ilha e não encontrar um lugar onde estacionar. A alternativa nestas ocasiões consiste em sair novamente da ilha e estacionar fora, ou então rumar a outras praias. Este problema não será resolvido por uma ponte com duas vias e poderá pensar-se, assim, que esta ‘melhoria’ da ponte vai, no máximo, deixar o problema tal como ele está. A verdade é que provavelmente irá piorá-lo. E vou elaborar porquê.
Pode ser contraintuitivo, mas colocar duas vias na ponte vai piorar o trânsito. Atualmente o estrangulamento do fluxo que a ponte cria funciona como um guardião da ilha. Os semáforos da ponte permitem a entrada de uma média de 35 carros a cada 5 minutos. Assim, evita-se a acumulação em excesso de viaturas na ilha, o que facilita o processo de procura de estacionamento dos condutores (ou então a eventual capitulação de quem não encontra lugar). A eliminação do estrangulamento na ponte vai apenas promover a migração da carga de veículos de fora para dentro da ilha, com várias agravantes para o sistema.
Por um lado, o trânsito dentro da ilha vai ser mais desregrado do que fora, devido à convivência das filas com quem está a estacionar e com os atravessamentos de peões. Estas filas serão particularmente penalizadas pelo inevitável hábito das paragens em segunda fila, realizadas por condutores que esperam por um outro que sairá em breve (pensam), e ainda pelos condutores que se ultrapassam, impacientando-se por chegar primeiro àquele lugar adiante. Os condutores que querem sair da ilha vão ser atrasados pelas manobras dos que entram e, por consequência, aqueles também vão ser atrasados por estes, criando um círculo vicioso com spillovers em todo o sistema, tanto para quem chega como para quem quer sair da ilha.
Por outro lado, vai perder-se o efeito dissuasor da fila da ponte. Atualmente, confrontadas com a espera para entrar na ilha, são já algumas as pessoas que preferem estacionar fora e aceder à praia através do recente passadiço, retirando, assim, pressão rodoviária da ilha. Contudo, com a passagem da espera para depois da ponte, perde-se este efeito dissuasor, atraindo ainda mais carros para dentro da ilha que, por sua vez, se verão enredados no trânsito.
Se o interior da ilha atualmente já tem problemas de trânsito, estes só vão piorar. A ilha vai perder cada vez mais o seu aspecto idílico para se tornar num caos rodoviário. Uma aparente solução da ilha vai tornar-se no seu fim. Repito, o problema da ilha não está na ponte, mas sim no excessivo número de carros que a procura.
Aumentar os lugares de estacionamento nesta ilha também não é solução. Atualmente a ilha possui aproximadamente 940 lugares públicos (não contando com os privados), o equivalente a todo o largo de São Francisco de Faro – um largo com capacidade para albergar a Feira de Santa Iria, o Festival da Ria Formosa e até, em tempos, a Semana Académica. Se este número de lugares, em pleno Parque Natural da Ria Formosa, não é suficiente agora, quando pararíamos de o alargar? Aumentar o seu número só criaria procura induzida de mais carros, num círculo vicioso sem fim.
Esta questão é do conhecimento público e político. Os argumentos que apresentei foram pouco mais ou menos utilizados da mesma forma em 2014 para justificar a escolha da via única na ponte. A construção do novo estacionamento no exterior da ilha foi planeada precisamente nessa altura, assim como foi prometido um comboio que faria a ligação à ilha, exatamente para lhe retirar carros. Contudo, a pressão pública fez com que a decisão política tivesse de recuar e admitir a utilização de duas vias na ponte. No entanto, defendo, a solução de duas vias na ponte apenas vai piorar a ilha.
A solução para esta questão é incontornável: é preciso reduzir o número de carros na ilha. E dizer isto não significa tirar a ilha aos farenses. Afinal, a ilha de Faro é a única das ilhas-barreira com acesso automóvel, e não é a única com pessoas. A melhor solução possível passa pela implementação de um sistema de transporte coletivo que leve as pessoas do estacionamento exterior para dentro da ilha. Mas, para isso, é preciso melhorar, em muito, a credibilidade do transporte coletivo da cidade – e isso é um trabalho da autarquia. Tem de ser um desígnio do município criar sistemas cómodos, rápidos e fiáveis de transporte sustentável para as pessoas.
A solução tem de pressupor o seguinte: ao estacionar no parque exterior à ilha (também ele com capacidade para mais de 900 carros), uma pessoa tem de ter percursos sombreados, lugares sentados e informação real das partidas do transporte coletivo para a ilha. Este transporte tem de ser espaçoso o suficiente para sentar e até pousar o guarda-sol ou cadeiras e ter uma frequência razoável. Em menos de dez minutos uma pessoa poderá estar na ilha, com a possibilidade de o transporte fazer a distribuição lá dentro (no parque de campismo e embarcadouro, por exemplo). Isto para não falar da possibilidade de aceder à ilha a pé através do passadiço, como já muita gente o faz atualmente. São apenas 15 minutos de percurso, com a deliciosa paisagem da Ria Formosa como fundo.
A entrada de carro na ilha não seria proibida, mas antes paga para não-residentes e não-trabalhadores segundo o tempo de permanência, de forma a dissuadir a utilização desta opção. Poderia até ser pensado um esquema de pagamento dinâmico, dependente do período do ano e da ocupação momentânea da ilha, e reduzido para carros com elevada ocupação (como se faz no Reino Unido com as high occupancy toll lanes), promovendo boleias entre grupos e contribuindo ainda mais para a retirada de pressão da ilha.
A Ilha de Faro faz parte de um dos mais belos e importantes patrimónios da sua região. A Reserva Natural da Ria Formosa foi estabelecida em 1978 com o propósito de salvaguarda deste ambiente único, alinhando-se com as boas práticas europeias e o espírito da época que olhava à preservação da biosfera e em especial dos ecossistemas únicos. Retirar o excesso de carros da ilha iria ao encontro destes objetivos, para além de a tornar mais amigável para quem nela anda, com ruas mais seguras para crianças e mais aprazíveis para todos. Uma intervenção assim não tiraria a ilha aos farenses, apenas contribuiria para evitar o futuro caos rodoviário na ilha e, principalmente, torná-la num sítio cada vez mais único.
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