A ARQUITECTURA TRADICIONAL ALGARVIA D’ENJOELHOS EM PROCESSO DE DECAPITAÇÃO ACELERADA
No início da década de oitenta, as forças vivas do Algarve tocaram a rebate e juntaram-se em torno de uma campanha denominada “O Algarve é Branco”, liderada pela extinta Comissão Regional de Turismo do Algarve, à época presidida por Ismael Ribeiro da Cunha. As autarquias, todas as autarquias independentemente da cor da fachada partidária, foram o braço armado no terreno. Estava então em curso um processo acelerado de descaracterização cultural do Algarve visível, além de outros aspectos, no número alarmante de azulejos de casa de banho que passaram a revestir casas e apartamentos, quando não de pinturas berrantes, de telhados pretos e verdes de inclinação mais própria para países do Norte onde neva abundantemente que da bonomia pluvial do Algarve.
Muitos emigrantes, ao construir a casinha dos seus sonhos no torrão natal, tinham tendência a replicar em Portugal (fenómeno geral) modelos arquitectónicos dos países de acolhimento. Fora desse contexto e dessa explicação, estar-se-ia perante casos de simples mau gosto, ou de reflexo tipo macaco de imitação. Na altura, rapidamente se estancou a epidemia.
Não deixa de ser triste ver o Algarve d’enjoelhos ser culturalmente decapitado. Um verdadeiro terramoto selectivo. Silenciosamente ensurdecedor
Cada Câmara Municipal impôs um crivo no licenciamento de novas construções, onde o branco das fachadas passou a ser a orientação dominante, e a chamada telha tradicional reocupou o seu lugar. Não foi pouco, mas também não se passou muito disso até tempos mais recentes em que as preocupações de preservação do que se convencionou chamar de arquitectura tradicional algarvia atingiram o grau zero, e o zénite no processo de desaparecimento daqueles elementos definidores da estética e da paisagem desta região. Claro que não existe um conceito unificado de arquitectura algarvia. Da Costa Vicentina à Serra de Monchique, da beira-mar e do Barrocal à Serra, do Caldeirão ao Vale do Guadiana, há diferenças assinaláveis. Existem modelos de arquitectura popular e erudita, do rural puro ao urbano sofisticado dos palacetes e dos “chalets”, das casas senhoriais às casas pobres e térreas. Há diferentes processos de construção, da taipa ao adobe, diferentes materiais cerâmicos, e pedra, muita pedra, xisto da Serra, calcário no Barrocal, grés vermelho de Silves, foiaíte de Monchique.
No processo de preservação desta memória colectiva sente-se um défice de orientações urbanísticas e vontade política, existe uma permissividade excessiva para com os interesses da especulação imobiliária e uma subalternização das políticas de reabilitação urbana. É a prática do deita abaixo e ergue-te oh! cimento armado, tão alto quanto possível! A modernice da arquitectura tipo caixote disseminada em meio rural, então, é de bradar aos céus. Mas a ameaça mais recente, fenómeno da moda, da finta e do desenrasca, em fase de crescimento explosivo, vem das casas pré-fabricadas. Fora das urbes, crescem como cogumelos, não importa onde, de muito duvidosa legalidade, e mais que certa ausência de fiscalização por parte das autarquias. Só não vê quem não quer. Não têm nada a ver com a arquitectura mais antiga ou mais recente do Algarve.
Uma autêntica praga, um espécime invasivo na paisagem imobiliária, um elemento estranho que, se não for atalhado borrará a pintura do postal ilustrado que tem caracterizado o reyno. Se nada for feito, no conclave da AMAL, no triunvirato da CCDRA, na comunidade de projectistas, urbanistas e técnicos diversos, desse Algarve construído de outrora sobrará uma escassa percentagem de zonas e edifícios que sirvam de mostra. E, nas bibliotecas, jazerá um considerável espólio de investigação sobre o tema reunido em livros, teses de doutoramento e álbuns de fotografias. Mas, cá fora, onde brilha o sol, se honra o passado e se exibe o presente com orgulho, adeus lindas chaminés algarvias, símbolos identitários dos donos das casas e do seu estatuto social. Adeus elegantes platibandas, criatividade feita de geometria e cores. Adeus, abóbadas pintadas de Silves. Adeus, telhados de quatro águas, perfume oriental que impregnou Faro e Tavira. Adeus, açoteias cubistas de Olhão, donde se vigiava o mar no regresso da faina, secavam figos, amêndoas e peixe e se descansavam corpos e espíritos nas noites de Verão. Adeus fornos, silos, azenhas, cisternas e moinhos. Adeus, escaiolas, verdadeiras obras de arte, herança romana prolongada nos tempos de geração em geração.
Claro que o mundo é composto de mudança, já dizia ou cantava Sérgio Godinho (estamos em Abril…). E a arquitectura não é excepção. Mas não deixa de ser triste ver o Algarve d’enjoelhos ser culturalmente decapitado, peça por peça, edifício por edifício, rua a rua, por indiferença, desconhecimento, insensibilidade, conivência ou inacção. Um verdadeiro terramoto selectivo. Silenciosamente ensurdecedor.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia