Matadouro cinco, de Kurt Vonnegut
Matadouro cinco, de Kurt Vonnegut, foi publicado pela Alfaguara em 2022, numa nova edição, com nova tradução de Miguel Cardoso, no âmbito do centenário do autor. Assinalou-se assim o regresso às livrarias de um clássico, um dos mais importantes romances sobre o absurdo e a arbitrariedade da guerra, seguido de Pequeno-almoço de campeões, publicado no ano passado.
Esta edição inclui um «Prefácio», assinado por Salman Rushdie, onde se pode ler:
«Há aqui muita comédia, como em tudo o que Vonnegut escreveu, mas a guerra não é vista enquanto farsa. É vista como uma tragédia tão grande, que só a máscara da comédia nos permite olhá-la nos olhos. Sendo um grande romance realista, Matadouro cinco é também sensível o suficiente para que, no final do horror que toma como tema, a esperança seja possível.»
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Doutorado em Literatura na UAlg
e Investigador do Centro de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC)
Billy Pilgrim, jovem protagonista desta narrativa, tal como o autor Kurt Vonnegut foi feito prisioneiro de guerra pelo exército alemão
Dresden, 1945: escassos meses antes do fim da guerra, a cidade é bombardeada até à destruição total, dezenas de milhares de pessoas mortas numa só noite. Billy Pilgrim, jovem protagonista desta narrativa, tal como o autor Kurt Vonnegut foi feito prisioneiro de guerra pelo exército alemão e sobreviveu ao bombardeamento.
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Matadouro cinco é um romance antibélico, como a própria estrutura o acusa, feito de fragmentos, na recorrência da expressão «É a vida.» a rematar vários dos episódios (e acentuando a falibilidade da vida), no absurdo (o protagonista acredita que foi raptado por extraterrestres e que esteve num outro planeta), numa não-linearidade narrativa (o protagonista ora está no presente da guerra ora dá saltos para o futuro, como se os vários planos temporais se sobrepusessem, ou a consciência do narrador denuncie que foi reduzida a estilhaços, e aquilo que se vive na guerra é uma marca indelével, causadora de uma fragmentação do eu, que nunca mais esquece aquilo que viveu e experienciou, por muitos anos ou décadas que passem).
Pequeno-almoço de campeões, de Kurt Vonnegut
Depois de Matadouro cinco, chega-nos Pequeno-almoço de campeões, de Kurt Vonnegut, com selo da Alfaguara e tradução de Miguel Cardoso.
Depois de uma sátira particularmente incisiva sobre a guerra, este é mais um livro desconcertante e irreverente do autor norte-americano, cuja imaginação corre aqui livremente, sem limites de criação. No entanto, o fantasma e o trauma da guerra continuam presentes, sempre mencionados de forma derrisória pelo narrador:
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“O Vietname era um país onde a América estava a tentar fazer com que as pessoas deixassem de ser comunistas atirando coisas para cima delas de aviões.” (p. 108)
(Não deixa aliás de ser curioso como involuntariamente se têm multiplicado os romances que tenho lido sobre o Vietname ou sobre a guerra no Vietname.)
O protagonista deste romance – se é que se lhe pode chamar assim, uma vez que por vezes nem se compreende se de facto a prosa compõe uma narrativa – é o escritor de ficção científica Kilgore Trout, uma das mais conhecidas personagens de Kurt Vonnegut. Em paralelo, encontra-se a personagem de Wayne Hoover, um bem-sucedido vendedor de carros – e sócio de inúmeros outros negócios. Entretanto, temos ainda uma voz que nos narra na primeira pessoa, assumindo-se plenamente como o criador das outras personagens, e que elucida o leitor que estas só fazem aquilo que ele pretende que façam.
“Ali mesmo no bar, a espreitar através dos meus vazios para um mundo que eu próprio tinha criado, dei por mim a dizer a seguinte palavra, em surdina: esquizofrenia.” (p. 221)
E é esse o sentimento que perpassa ao longo desta narrativa – o de uma escrita esquizofrénica e desconcertante.
Uma narrativa frenética, de prosa torrentosa, muitas vezes desviando-se do seu curso, onde chegam a surgir pequenos desenhos quase como rabiscos que pretendem ilustrar algumas das referências feitas. Dessa forma, o autor compõe a paisagem humana de uma certa América, de forma irónica, risível até. Um autor-narrador que se equipara mesmo a Deus: “Ali, na penumbra do bar, eu estava em pé de igualdade com o Criador do Universo.” (p. 229)
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Este é ainda um romance que desconstrói convenções literárias, imbuído de uma metareflexividade explícita profundamente irónica e até risível. Veja-se a seguinte passagem em que o narrador parece reflectir um pouco sobre os princípios da ficção e logo em seguida passar ao cómico e ao absurdo. Quando nos fala de uma romancista, sobre quem assume não ter qualquer respeito, afirma que ela fazia “com que as pessoas acreditassem que a vida tinha personagens principais, personagens secundárias, pormenores significativos e pormenores insignificantes, que continha lições a serem aprendidas, provas a serem superadas, e um princípio, um meio e um fim.” E logo em seguida este narrador – que pode ser facilmente tomado como o próprio autor (até porque ambos estão por volta dos 50 anos no momento da escrita) – declara veementemente que com a idade vai ficando cada vez mais estarrecido e enraivecido com as decisões idiotas dos seus compatriotas que de forma inocente e natural se comportam de modo abominável: “eles só estavam a fazer o melhor que conseguiam para viver como as pessoas inventadas nos livros de histórias. Era por isso que os americanos disparavam uns contra os outros com tanta frequência: era uma convenção literária muito conveniente para dar por concluídos contos e romances.” (p. 239)
Voltando às personagens centrais: Kilgore Trout descobre, horrorizado, que Wayne Hoover, interpreta à letra as rocambolescas teorias apresentadas nos seus livros – livros esses que aliás escreveu em catadupa, sem sequer se preocupar em deles tirar proveito, uma vez que foi descobrindo acidentalmente que as suas histórias eram publicadas nesta ou naquela revista.
Cama de gato, de Kurt Vonnegut
Depois de Pequeno-almoço de campeões e Matadouro cinco, chegou a vez deste Cama de gato, do irreverente e contestatário Kurt Vonnegut, autor cuja obra tem vindo a ser publicada pela Alfaguara. A tradução é de Miguel Cardoso.
Ler Vonnegut é sempre uma viagem, e uma vertigem, como fica claro na epígrafe do romance, «Nada neste livro é verdadeiro», e também nas primeiras linhas deste primeiro capítulo, intitulado «O Dia em Que o Mundo Acabou».
“Chamem-me Jonas. Os meus pais chamaram. Enfim, mais ou menos. Chamaram-me John. Jonas, John… Ainda que eu fosse Sam, seria um Jonas: não porque tenha trazido infortúnio aos meus semelhantes, mas porque alguém ou algo me forçou a estar, impreterivelmente, em determinados lugares, em determinados momentos.” (p. 15)
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Jonas, ou John, é um jornalista que quer saber mais sobre a catástrofe de Hiroxima. A pesquisa leva-o à ilha de San Lorenzo e ao enigmático Felix Hoenikker, um dos criadores da bomba atómica, vencedor de um Nobel, agora ocupado com a sua mais recente invenção: o gelo-nove, substância capaz de extinguir a vida na Terra, e que é detida apenas por duas potências mundiais, naturalmente os Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Os capítulos, mais de 100, são breves, muitas vezes escritos em jeito de pergunta-resposta, como convém aos fragmentos de entrevista que parecem constituir. Ao longo da narrativa, o narrador, que se assume logo de início como um ex-cristão, agora dedicado ao bokononismo, cita passagens de «Os Livros de Bokonon».
Pode ler-se, a dada altura: “Quando um homem se torna escritor, assume uma obrigação sagrada de produzir beleza, iluminação e conforto a toque de caixa.” (p. 230)
Na prosa delirante e fascinante de Kurt Vonnegut não é isso que se faz, até porque as voltas que a história percorre em pouco contribuem para dar sentido a um mundo sem sentido. Este livro é, contudo, mais acessível – sem nos atrevermos a usar a palavra linear – do que outras obras do autor. A forte crítica social, como sempre, está lá, ao falar-nos das intrigas políticas daquela estranha nação, a República de San Lorenzo, onde Jonas conhece Papa Monzano, o governante ditatorial da ilha, e a religião ilegal fundada por Bokonon. À habitual sátira da Guerra Fria própria dos seus livros que são clássicos de contracultura junta-se uma intrigante história apocalíptica sobre o destino do planeta – não é por acaso que o livro termina num “rebuliço cataclísmico” (p. 257).
Kurt Vonnegut (1922-2007) nasceu em Indianápolis, nos Estados Unidos, descendendo de emigrantes alemães que chegaram ao país no século XIX. Por influência do pai, estudou Bioquímica na Universidade de Cornell, embora tivesse mais interesse nas Humanidades. Alistou-se no Exército em 1943. Pouco depois do suicídio da mãe, foi enviado para a Europa, e combateu na Batalha das Ardenas. O seu esquadrão foi dizimado pelas forças alemãs. Como prisioneiro de guerra, seguiu para Dresden, na Alemanha, onde viveu num matadouro e trabalhou numa fábrica alimentar. Em 1952 publicou Player piano, o seu romance de estreia. A crítica sentiu-se desconcertada, desde o começo, perante um escritor que não encaixava nos géneros mais canónicos nem nos estilos mais em voga.
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