Jorge Corvo, nascido em Santa Catarina, Tavira, há 87 anos, percorre em memórias o seu passado de ciclista com a pedalada e a lucidez que fizeram dele o temível contrarrelogista da velocipédica nacional nos anos sessenta. Correu com grandes nomes do ciclismo como Alves Barbosa, Ribeiro dos Reis, João Roque, Sousa Cardoso, Américo Raposo, Pedro Júnior e muitos outros.
No pelotão internacional ombreou com o campeoníssimo Jacques Anquetil, mas se tiver que escolher entre todos, o seu grande herói é Joaquim Agostinho. Dos nomes da atualidade, apenas João Almeida lhe merece uma referência à parte.
Revê-se no seu estilo em cima da bicicleta, na sua fibra e no seu modo de pedalar. Se é verdade que quem aprende a andar de bicicleta nunca esquece, hoje a idade não lhe permite grandes corridas, mas não deixa de sair à rua para ver a Volta passar! O bichinho ficou com ele.
Jorge Corvo: Um ás no pedal contra o relógio e a concorrência
Com que idade começou a correr?
Oficialmente comecei a correr no dia 10 de Junho de 1951, nas festas de S. João e outras que se faziam por aqui, na pista de Tavira. Mas antes, com os meus 16 a 17 anos, trabalhava numa loja em Tavira e como morava na Horta de Santa Catarina, todos os dias fazia 14 quilómetros de bicicleta.
E começou logo a dar nas vistas?
Nas primeiras corridas de pista comecei a competir e ganhava, depois como amador pelo Ginásio fui correr contra ciclistas profissionais ou independentes como se dizia na época, e ganhei também. Numa segunda vez num sprint final fui encostado à lateral por um concorrente, sendo-me atribuída a vitória por desclassificação do adversário.
Já mostrava o que viria a ser no futuro…
Era rápido, mas depois lesionei-me no joelho direito num acidente que não me impedindo de correr retirou-me alguma velocidade. Prendeu-se-me o pé numa pedra e torci o joelho, mas mesmo assim ainda passei toda a noite de Santo António a dançar. Não quis ser operado e fiquei um pouco diminuído na força da perna direita. Praticamente era a perna esquerda que puxava e a outra só ajudava.
E quando é que chegou a ciclista profissional ou independente?
Foi em 1958.
Mas nesse tempo um profissional da bicicleta tinha que exercer outra atividade porque o ciclismo por si só era insuficiente para viver, não era?
Infelizmente era assim, trabalhei sempre. Primeiro acumulava o ciclismo com um emprego numa loja comercial e, mais tarde, fui admitido na Câmara Municipal como leitor-cobrador. Fui o primeiro a exercer essa função na cidade e como Tavira era uma terra pequena só me ocupava uns dez dias por mês, o que me dava algum tempo para treinar.
Qual foi a primeira prova nacional em que participou?
Foi num campeonato regional para amadores por equipas, em Lisboa, e fomos campeões nacionais. Ganhámos correndo com apenas três elementos (Sérgio Páscoa, João Bárbara e eu) contra os cinco das outras equipas do Sporting e do Benfica. A partir daí é que se começou a competir no Algarve.
E chegou a tropa!?
Fui para a tropa em 55/56 e em 1958 alinhei pela primeira vez na Volta a Portugal. O Tavira acabava de formar uma nova equipa porque tinha chegado ao fim o reinado de Manuel Palmeiro e Joaquim Apolo. No Algarve só o Ginásio e o Louletano é que tinham equipas.
E no Louletano alinhava o Vítor Tenazinha que era como dizem, um poço de força e um dos seus mais temíveis concorrentes. Que pensa dele?
Era um bom ciclista, mais novo que eu uns oito ou dez anos, cheio de força, rolava bem e era bom a subir, mas não era muito constante numa prova. Nessa altura corria também pelo Louletanto o Valério Clara, conhecido pelo Valério Chocolateira, era muito rápido, mas pouco cauteloso e uma vez sofreu uma queda grave que o levou ao hospital e já não regressou à prova. Quanto ao Tenazinha ainda correu pelo Sporting e pelo Benfica. Foi comigo a uma volta ao Estado de S. Paulo no ano em que o Sérgio Páscoa venceu.
E quais eram os seus companheiros de equipa nessa Volta de 58?
Ainda corri com o Inácio Ramos, Aquiles dos Santos, João Bárbara, Sérgio Páscoa, Alcides Neto, Virgílio Nunes, Vítor Lourenço e Hermínio Correia, de Faro…
Como ciclista qual era o seu ponto forte?
O meu forte era o contra-relógio e quanto maior fosse a etapa ou a prova, melhor para mim. Era onde tinha mais facilidade. Mas também rolava bem em reta, mas nas descidas só o fazia bem quando estava bem classificado, caso contrário, não arriscava a queda.
Apesar do problema que teve no joelho continuava a dar cartas no contra-relógio!!!
Ganhei em 1961 e nos outros anos ficava quase sempre em segundo ou nos lugares próximos. Aproveitei bem um estágio que fui fazer a França com o Alves Barbosa, num curso onde aprendemos a técnica de dosear o esforço e de saber quando atacar ou poupar energia nas diferentes fases de uma prova. Não era dar tudo de início, mas saber controlar o tempo, a força, a respiração para atacar forte na parte final.
Antigamente os contra-relógios eram de mais longas distâncias comparadas com os que se realizam hoje, não?
Sim, eram de 60 a 70 quilómetros, mais ou menos. O contra-relógio que ganhei mais vezes foi o de Loulé/Tavira e depois o da Covilhã/Guarda. No campeonato regional fazíamos provas contra o cronómetro entre Faro e Lagoa ida e volta, num total aproximado de 100 quilómetros e andava sempre sozinho. Não tinha concorrência.
Quer dizer que para si, quanto maior fosse a prova em distância, melhor era?
Sim, sim, para mim era melhor.
Este ano o contra-relógio da Volta ao Algarve entre Vila Real de Santo António e Tavira, na distância de 32,2 quilómetros, foi ganha pelo ciclista da Quick-Step, um dos melhores do pelotão mundial, Remco Evanapoel, que gastou 37 minutos e 49 segundos e a média geral foi de 51,089. Acha que no seu tempo com estas estradas e estas máquinas conseguia fazer abaixo destes tempos?
É difícil de dizer…
Faria abaixo dos 37 minutos?
Bem, não sei, não sei, temos sempre de ter em conta o piso da estrada, as condições do tempo e do vento como você disse e as bicicletas… é difícil comparar e afirmar. São tempos diferentes.
As bicicletas de hoje nada têm a ver com as do seu tempo…
Não têm mesmo nada a ver. Por exemplo, quando metíamos uma mudança de velocidade o colega ou adversário que ia ao lado ou à frente, apercebia-se que íamos atacar pelo barulho que fazia a engrenagem. Agora não fazem barulho nenhum e são como os computadores, basta carregar ligeiramente sem dar sinal ou alarme algum, surpreendendo os adversários.
Além disso, a própria estrutura da bicicleta era mais pesada…
Sim, agora é tudo mais leve e mais cómodo, como o guiador, por exemplo, que agora oferece um descanso para os braços e mãos. Antigamente se não usássemos luvas, ficávamos com as mãos em calos ou em sangue.
Eram umas pasteleiras ao pé destas…!
Claro, eram mais pesadas, as rodas eram diferentes e os travões com calços de borracha não eram seguros quando chovia porque por vezes não obedeciam, e agora são em disco e mais eficientes. Não há comparação!
Para si, na atualidade qual é o melhor ciclista a correr em Portugal?
Em Portugal… olhe eu admiro muito um que não corre entre nós que é o João Almeida. Os outros estão integrados em equipas do Porto ou do Norte e os algarvios estão lá. Há o Amaro Antunes, que mostra ter boas qualidades, mas agora surgiu aquele problema de suspeita de doping na equipa do Porto… olhe não sei dizer nada, mas se o que dizem acerca do caso do Porto for verdade, isso pode mudar muita coisa e ajudar na transparência e na defesa da verdade desportiva e credibilização do ciclismo em Portugal. Só espero que os rapazes novos não se deixem tentar por métodos suspeitos que acabam por prejudicar e comprometer a sua saúde e a sua carreira.
Mas falava no João Almeida…
O João é muito parecido comigo. Ele não oscila e eu quando o vi na Volta à Itália disse para mim que ele não estava nem. Não era ele e acabou por desistir por Covid, como se sabe.
Nota-se que ele é um ciclista que parece correr sem grande esforço e que raras vezes se levanta do selim!
Eu também era raro fazer isso.
O João Almeida é, portanto, para si, um caso à parte?
Sim, um caso à parte, não há dúvida.
Se corresse hoje, em que lugar é que se via integrado no pelotão internacional de uma grande equipa, em provas como uma Volta à França ou à Espanha?
Não posso responder a isso, mas tenho para mim que era para andar entre os primeiros 10 a 20 primeiros e integrar a cabeça do pelotão e não andar cá atrás.
Em todas as provas em que participou caiu muitas vezes, lesionou-se com gravidade?
Nas dez Voltas a Portugal que realizei caí duas vezes, sem mazelas graves, em quedas provocadas por outros adversários ou por quedas de grupo.
O Jorge Corvo foi um dos mais populares corredores nas estradas portuguesas e ainda hoje é muito lembrado…
Isso deve-se aos resultados que obtive: três vezes em segundo lugar na Volta a Portugal, uma em terceiro e outras duas entre os dez primeiros do pelotão.
A primeira em que ficou atrás do camisola amarela, foi em que ano?
Foi em 1959 com uma diferença de cinco segundos para Carlos Carvalho, do F.C. do Porto.
Foi essa Volta onde se diz que houve marosca e que lhe roubaram a vitória?
Dizem isso, dizem, não sei (risos), a minha missão era pedalar… rsrsrs.
Perdeu na última etapa?
Foi num contra-relógio Tomar/Alpiarça. Era para ser um contrarrelógio individual porque só o Porto é que tinha a equipa de sete corredores completa, enquanto nós só tínhamos três e outros nem isso. Segundo os regulamentos, nessas circunstâncias, a prova teria de ser um contrarrelógio individual, mas a organização decidiu realizar a etapa por equipas com vantagem para os clubes que se apresentavam com mais atletas. Foi uma luta desigual de sete contra três. E perdi por cinco segundos nesse contrarrelógio coletivo antirregulamentar!
Mas além dessa irregularidade acha que se terá passado algo mais?
Para mim foi mais uma manhosice que eles fizeram, segundo disseram pessoas que observaram o trabalho dos fiscais na linha da meta que estariam ao serviço do Porto. As pessoas diziam que quando um de nós chegava à meta eles carregavam no botão do cronómetro só depois de nós termos atravessado a linha de chegada, enquanto os das grandes equipas como o Benfica, Sporting e FC do Porto quando vinham a cinco ou dez metros já eles paravam o relógio. O cronómetro era manual, o que permitia essas coisas e essas suspeitas. Quando fui ao Brasil a prova era controlada por um aparelho eletrónico e ganhei a Volta ao Estado de S. Paulo. Aqui é que nunca consegui vencer rsrsrs!
O Jorge Corvo perdeu Voltas por diferenças mínimas, não tendo ganho nenhuma, o que lhe valeu o epíteto do Poulidor português que foi um grande corredor francês, mas que também se ficou sempre pelos lugares cimeiros sem nunca ter conquistado uma Volta a França. Morria na praia, como se costuma dizer…
(risos) Pois acontece…rsrsrs.
E para além do que já disse anteriormente, o que é que falhou ou faltou, se falhou ou faltou alguma coisa para não ter ido mais longe?
Depois do que lhe contei eu também já era casado e tinha uma filha, o que me levava a ter receio de cair e não arriscava, provavelmente, onde podia ou devia ter arriscado.
E correu até tarde?
Ainda corri até aos 33 anos.
Ganhava-se alguma coisa de jeito no ciclismo nesses anos?
Eu o máximo que ganhei no clube foi 500 escudos por mês, que não dava para os bifes que comia todas as manhãs…
Corria-se por amor à camisola e à modalidade…
Pois, eu posso dizê-lo, fui o ciclista mais barato do Ginásio, porque tinha duas bicicletas e, por vezes a suplente era usada por um colega que tinha tido alguma avaria com a dele.
Mas não eram as duas do Ginásio?
Não, as duas eram minhas porque nessa altura o clube não tinha bicicletas e quem quisesse correr tinha que as comprar. Agora é diferente…
Ou seja, pagava-se para correr?!
[risos] Exatamente, era isso, era isso… rsrsrs.
O Ginásio é um clube muito antigo…!
O Ginásio de Tavira é o clube de ciclismo mais antigo de Portugal.
No estrangeiro correu a Volta à França do Futuro e a Vuelta em Espanha… com o Anquetil e o Poulidor, julgo saber!
Nunca cheguei a correr com o Poulidor, mas com o Jacques Anquetil sim, na volta à Espanha e tenho até aqui uma fotografia com ele. Fiz duas voltas ao futuro em França que era para ciclistas mais jovens, mas as exigências e as médias eram quase as mesmas da prova rainha.
Mesmo nessas provas do pelotão internacional com grandes nomes do ciclismo mundial, não teve maus resultados, pois não?
Uma vez já tinha o 19º lugar assegurado, mas um furo e a demora na assistência remeteram-me para o 28º lugar na classificação final… E nesse tempo a Vuelta era em abril quando chovia muito, tornando a prova muito dura e difícil.
Já falámos na vitória duvidosa de Carlos Carvalho, do Porto, em que o Jorge Corvo foi segundo classificado a 5 segundos do vencedor. Hoje em dia fala-se muito em verdadeiros escândalos de doping que emprestam à modalidade a imagem de um jogo sujo. No seu tempo…
… na altura já havia umas coisas e havia quem as tomasse…
Mas não havia controlo antidoping, pois não?
Pois isso é que era o mal… mas as suspeitas recaiam especialmente sobre os que vinham de fora e corriam provas no estrangeiro e que arranjavam por lá produtos e estimulantes proibidos, como foram os casos de Alves Barbosa e mais tarde o Joaquim Agostinho.
A gente sabe que o ciclismo é um desporto de equipa exigindo grande capacidade de resistência, de sofrimento e muita força, mas não basta ter pernas, pois não?
É preciso muita cabeça e inteligência também. E isso é trabalho da competência dos treinadores e diretores das equipas que devem transmitir a tática da corrida. Nós no Ginásio não tínhamos nenhum treinador. Havia apenas o Dr. Mansinho, que era o diretor do clube que nos ia dando algumas dicas para nossa orientação nas provas.
Nesse tempo o senhor competia com nomes do pelotão já muito corridos e muito batidos como o João Roque, Alves Barbosa, Sousa Cardoso…
Corri com o Alves Barbosa, João Roque, Sousa Cardoso e Ribeiro da Silva, entre muitos outros. Quando passei a profissional corri a Volta a Lisboa e fiquei em quarto lugar à frente deles. O vencedor dessa corrida, disputado a quatro ao sprint, foi o Américo Raposo seguido do Pedro Polainas.
Desses nomes com quem competia qual era o melhor deles todos?
Nessa altura já sobressaía o João Roque, do Sporting, mas o mais completo que conheci foi o Sousa Cardoso, do F.C. do Porto.
De todos, entre portugueses e estrangeiros, quais são os seus heróis?
Joaquim Agostinho em Portugal e Jacques Anquetil no pelotão internacional.
Há pouco tempo perdeu, com a morte de Sérgio Páscoa, um amigo e antigo colega de equipa. Como é que sentiu a partida de uma pessoa com quem sofreu tantas vezes lado a lado em cima da bicicleta?
Foi uma dor enorme, fomos colegas e amigos durante uma vida. Ele depois foi para o Sporting, mas nunca perdemos o contacto. Sendo ele de Vila Nova de Cacela encontrávamo-nos por aqui com alguma frequência e convivíamos como amigos que sempre fomos. A morte dele representa uma perda que não sei expressar bem!
Jorge, ainda sai à rua para ver a Volta passar?
Agora já nem tanto porque a Volta praticamente já não passa pelo Algarve. Mas sempre que há uma etapa ou outras provas aqui perto não falho e vou ver, mas ao norte a idade já não me motiva a ir tão longe.
É uma pena o Algarve com a tradição que tem no ciclismo, com equipas como o Tavira e o Louletano, ter ficado de fora das grandes provas nacionais!?
Não há desculpa para a organização não trazer a corrida ao Algarve. No meu tempo não havia hotéis – havia umas pensõezitas – mas não faltava boa vontade para fazer evoluir o ciclismo. Agora só vão aos concelhos onde as câmaras pagam, o que se compreende, mas não justifica a marginalização de uma região que tanto deu e continua a dar à modalidade. E não falta dinheiro por aqui…
Isto hoje já não se pode chamar uma Volta a Portugal!
[risos] pois não, é antes uma volta ao quintal ou ao norte, no melhor dos casos, rsrsrsrs.
Se o tempo voltasse para trás o Jorge Corvo voltava a montar uma bicicleta e tentar fazer melhor do que fez no passado ou não?
Sim, sim, fazia mesmo, agora com outras condições.