Espanto e Encantamento – Memórias de um vigilante de museu, de Pablo d’Ors, chegou a Portugal em Fevereiro com selo da Quetzal, traduzido por Cristina Rodriguez e Artur Guerra. Este é o primeiro romance do autor publicado por cá, depois dos ensaios O Amigo do Deserto e Biografia do Silêncio, dois livros de bolso igualmente preciosos de um escritor muito particular, que é padre, filósofo, teólogo, escritor e crítico literário. Na essência, este romance não diverge muito dos ensaios com que Pablo d’Ors nos brindou.
Espanto e Encantamento é a narrativa, na primeira pessoa, de um vigilante de museu. Formalmente o romance estrutura-se ao longo de várias salas, começando pela «Entrada» e terminando na «Saída», sendo que cada capítulo corresponde a uma sala de um pintor diferente. Os capítulos por sua vez dividem-se em breves secções, pelo que o livro se pode ler como um pequeno guia.
Alois Vogel é vigilante do Museu dos Expressionistas de Coblença, aquela que parece ser a mais entediante e menos original das profissões. E porque nesta escrita o pensamento discorre livremente, em jeito de ensaio, este vigilante, começa por considerar, com graça e ironia, como grande parte da vida na nossa sociedade assenta na vigilância. Há inclusivamente vigilantes que vigiam os vigilantes de museu.
Num discurso ligeiro, com leveza e fino humor, Vogel conta-nos a história da sua vida, profundamente desinteressante, até que decidiu tornar-se, para assombro do seu círculo íntimo, vigilante de museu: “perguntei-me se haveria algum lugar no mundo como aquele museu, onde aconteciam tantas coisas, apesar de aparentemente não acontecer nada” (p. 50).
Neste sítio, onde não se passa nada mas tudo acontece, como muitas vezes parece ser a vida, Alois Vogel narra-nos assim o seu quotidiano, o dos visitantes do museu (e as vidas que lhes inventa) que saem sempre transformados no final das visitas ao museu, os seus amores platónicos pelas mulheres que ele observa de longe, a de um diretor fantasma, a dos colegas, assim como as histórias dos mestres do expressionismo e, subtilmente, nos indicia as suas próprias impressões em torno das obras de mestres, como Dix, Schad, Beckmann, Kandinsky, Klee, Kokoschka, Macke, Matisse, Mondrian, Münter…
Não obstante nos deixar as suas reflexões sobre tudo e sobre nada, nomeadamente sobre a pintura, sendo um leitor ávido de obras sobre arte – que escrevinha nas margens –, Alois Vogel sublinha que com o tempo aprendeu “que a complexidade para olhar um quadro reside apenas na extrema simplicidade com que deve ser olhado. Porque não é preciso pensar em nada; menos ainda interpretar; isto é o pior, pôr-se a interpretar.” (p. 217)
Num trabalho que consiste em passar longas horas estático e atento, o vigilante aprende a observar o pormenor, o pequeno, o diminuto, seja o voo de uma mosca persistente, sejam as dobras das suas calças por onde imagina um diminuto eu a fazer alpinismo: “descobri o espantoso mundo das pequenas coisas, onde se oculta, sem dúvida nenhuma, o mistério de todo o visível e invisível.” (p. 168)
Afinal “a imaginação ou riqueza interior é uma qualidade muito benéfica para fazer face à solidão que a vigilância costuma implicar” (p. 180), numa vida passada maioritariamente em silêncio.
Uma narrativa feita de pequenos nadas, e que nos ajuda a encontrar um ritmo de abrandamento, em que se discorre quase impercetivelmente, sem pretensiosismos, sobre a natureza da vida, da arte, da solidão, do propósito da existência. A própria prosa, segundo o narrador, parece obedecer a este critério livre de criação: “aprendi que o importante para o verdadeiro artista não era o criado, mas sim criar. E foi com este mesmo espírito que escrevi estas memórias: sem nunca olhar para o fim, entretendo-me nas palavras e focando-as – como se fossem imagens – com uma lupa.” (p. 166)
Pablo d’Ors nasceu em Madrid, em 1963. É padre, filósofo, teólogo, escritor e crítico literário. Foi professor de dramaturgia e de estética teológica na Universidade Complutense e noutros institutos de estudos superiores de Espanha e da Argentina. Além de livros de ensaio, publicou romances e um livro de narrativas curtas. Em 2014, assumiu o cargo de conselheiro cultural do Conselho Pontifício para a Cultura (Pontificium Consilium de Cultura), por nomeação expressa do papa Francisco. A Quetzal publicou em 2019 a sua obra O Amigo do Deserto e, em 2022, Biografia do Silêncio – ambos já apresentados no Postal do Algarve.
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