A primeira edição em português de Pessoa: Uma Biografia, de Richard Zenith, chegou às livrarias a 19 de maio. Publicado numa belíssima edição de capa dura da Quetzal, e ilustrada com fotografias, este assombroso livro com quase 1200 páginas, publicado nos EUA e na Grã-Bretanha em 2021, chega-nos agora com tradução de Salvato Teles de Menezes e Vasco Teles de Menezes.
O mais completo trabalho biográfico sobre Fernando Pessoa até hoje, foi escolhido como um dos melhores livros de 2021 por prestigiadas publicações anglo-saxónicas, como o The New York Times. E, claro, finalista do Prémio Pulitzer 2022 – o que só por si é um grande mérito.
A biografia está belissimamente escrita. A prosa, erudita e clara, arrebata-nos. O biógrafo adota um tom muito próximo do narrativo, pelo que esta Uma biografia, lê-se com o arrebatamento próprio de um romance. Ao lermos sobre a vida de Pessoa, contactamos também com um completo retrato da viragem do século XIX e início do século XX.
Richard Zenith passou décadas a estudar a obra pessoana e a reunir a imensa documentação que lhe permitiu reconstituir a vida do poeta. Fernando Pessoa nasceu em Lisboa num dia de Santo António – 13 de junho de 1888 –, e foi também nesta cidade, de que nunca se afastou durante a idade adulta (depois de passar os seus anos de infância e juventude em Durban), que o poeta faleceu, aos 47 anos, no dia 30 de novembro de 1935. Na altura da sua morte, quase ninguém tinha lido um único poema seu. Na sua famosa arca de papéis soltos deixou um extraordinário legado literário, filosófico e espiritual; um verdadeiro quebra-cabeças ainda por montar.
Richard Zenith, autor norte-americano naturalizado português, radicado em Portugal há mais de 30 anos, é escritor, tradutor, investigador, e um dos mais destacados especialistas (nacionais e internacionais) da vida e obra pessoanas. Presenteia-nos agora com aquele que é, certamente, o livro do ano, possivelmente da década.
P – O Richard adopta aqui um tom muito próximo do narrativo, pelo que esta Uma biografia prende-nos como um romance. Não se coíbe aliás, de inserir um “certamente” ou “muito possivelmente” para escrever o que considera poder ter acontecido, criando cenários possíveis, sem exatamente fantasiar. Chega a tecer quem Pessoa teria sido, se tivesse ido viver para Inglaterra, como quase aconteceu… Este tom narrativo chegou-lhe naturalmente como parte do processo de reconstruir uma vida?
R – O tom narrativo foi-me surgindo por uma necessidade. Biografar é contar a história de uma vida. Uma miscelânea de factos não faz uma história. Têm de ser narradas com arte e sensibilidade, que espero ter adquirido graças ao meu longo contacto com Pessoa. Sim, há pinceladas do “muito provavelmente” ou “ao que parece”. Tive o cuidado de sempre indicar aos leitores quando não há bem certeza deste ou daquele pormenor.
“Pessoa, por mais desdobrado que fosse, por mais dispersado e repartido entre ‘outros eus’, era apenas um ser humano”
P – Quando lemos o título Pessoa. Uma biografia é impossível não pensar, primeiro, que há um jogo com o artigo indefinido. O leitor deve associar este Uma a um trocadilho com as várias vidas de Pessoa, multiplicado nos seus heterónimos, ou apenas ao facto de que toda a biografia é sempre passível de uma futura revisão?
R – Por um lado, queria realçar que Pessoa, por mais desdobrado que fosse, por mais dispersado e repartido entre “outros eus”, era apenas um ser humano. A biografia é sobre uma vida – uma vida, é certo, bastante invulgar. Por outro lado, não existem biografias definitivas e não apenas por serem passíveis de futuras revisões. Qualquer biografia é apenas uma maneira de contar a vida em causa. Haverá sempre outras maneiras.
P – É surpreendente como, para usar palavras suas, um homem «vulgarmente conhecido como “o Pessoa”, não parecia haver pessoa nenhuma, apenas poemas e personae» (p. 21). No entanto, esta reconstrução da vida e obra do poeta estende-se por mais de 1000 páginas. Isto deve-se a num tempo de vida terem cabido muitas existências?
R – Muitas existências, mas também muitíssimos interesses e uma curiosidade em fermento permanente. A vida imaginária de Pessoa era como que infinita.
P – A forma como ao longo da biografia se refere a Fernando, quando jovem, e Pessoa, como autor, foi premeditada ou terá acontecido naturalmente essa cisão?
R – Naturalmente. Foi uma maneira, entre outras, de aproximar-me – e de aproximar os leitores – ao biografado nas suas diversas idades.
P – Curioso aliás como decide abrir a biografia com a lista das «Dramatis personae», isto é, as dezenas de heterónimos ou autores fictícios criados por Pessoa. No entanto, refere ainda que aqui contempla-se a «maior parte». Será possível chegar eventualmente a um número preciso? Haverá ainda grandes revelações na arca de Pessoa?
R – Acho que não vale a pena contabilizar o número exacto de heterónimos e outros autores fictícios. Houve mais de cem nomes a que Pessoa contemplou atribuir alguma tarefa literária. Por vezes eram realmente apenas nomes, sem nenhuma espessura biográfica. Há duas ou três dezenas de autores fictícios com uma obra que, pequena ou grande, é de algum modo significativa. Maria José, por exemplo, é autora de uma única carta de amor, mas é fascinante. Há ainda muitos papéis da arca por publicar e alguns deles podem esclarecer o nosso entendimento de Pessoa enquanto pensador político e espiritual. Grandes revelações? Não me parece, mas posso estar enganado. Pessoa tem uma rara capacidade de surpreender na sua vida post-mortem.
P – Quer fale de Durban quer fale de Portugal, a contextualização do mundo e do tempo de Pessoa ocupa-lhe várias páginas, o que aproxima esta biografia de um portentoso retrato do final do século XIX e do início do século XX. Ainda que o poeta pareça desligado e distanciado do mundo que o rodeia, este magnífico fresco ajudou-o a compreender melhor a obra de Pessoa? Afinal ele foi também um brilhante ensaísta, e autor de «comentários políticos, textos históricos, tratados sociológicos» (p. 23).
R – Uma pessoa desligada e distanciada está assim em relação a um certo mundo. Esse mundo faz parte do filme; ajuda-nos a visualizar e perceber o tipo e o grau do distanciamento. E Pessoa — embora profundamente afastado do mundo num certo sentido — estava ao mesmo tempo muito atento a tudo que acontecia ao redor dele. Era um leitor assíduo de jornais e escreveu com paixão sobre os assuntos do dia, incluindo, por exemplo, centenas de páginas sobre a primeira guerra.
“Pessoa era dotado de uma inteligência invulgar que se manifestou cedo”
P – A certa altura podemos ler que «Pessoa já estava a treinar-se atleticamente (…) para se tornar um olímpico da literatura.» (p. 211) Noutro passo, também se pergunta «Pode o génio, afinal, ser uma questão de destino?» (p. 86). Ao ler esta biografia, a questão que se impõe, logo quando Fernando revela o seu brilhantismo na escola, é: Pessoa era naturalmente um génio ou, sobretudo, empenhou-se, apesar da sua dispersão, em transformar-se num génio?
R – Pessoa era dotado de uma inteligência invulgar que se manifestou cedo, mas as suas obras juvenis, embora revelem preocupações e características do poeta maduro (a invenção de alter egos e escritores fictícios, por exemplo), ainda não denunciavam indícios de génio. Pessoa, de facto, preparou-se para ser um génio. Queixava-se da sua fraca força de vontade para completar obras extensas, como o seu Fausto fragmentário ou o Livro do Desassossego, mas foi por querer e insistir muito que se tornou o escritor português mais genial do século XX.
P – Neste seu trabalho também ele genial, não se inibe de ilustrar como é que decorreram algumas das suas descobertas, ao longo desta tarefa hercúlea. Por exemplo, quando explica como encontrou um poema inédito de Pessoa (p. 176) nas suas pesquisas numa biblioteca em Durban. Assumir-se na primeira pessoa pode ser visto como uma mostra de humilde subjetividade?
R – Não é bem isso. Deixando-me surgir em primeira pessoa, pontualmente, ao longo do texto, eu queria recordar aos leitores que, num certo sentido, estou ao mesmo nível deles, compartilho com eles a experiência de descoberta e surpresa.
P – Da mesma forma, sendo um estrangeiro ainda que radicado em Portugal, há mais de 30 anos, parece tornar possível uma imodéstia na forma como elogia Pessoa, comparando-o a «poetas tão distintos como Virgílio, Petrarca, Dante e Shakespeare» (p. 159). Da mesma forma que quando descreve Lisboa, o faz como um recém-enamorado. Acha que esta perspetiva a partir de fora coloca, paradoxalmente, Pessoa e a sua cidade na justa perspetiva?
R – A sua citação está truncada. Comparo Camões, não Pessoa, com Virgílio, Petrarca, Dante e Shakespeare. Comparo Pessoa com modernistas do calibre de Eliot, Pound, Musil e Yeats. Creio que o meu alto apreço pelo biografado é objectivo, justo. Vale a pena frisar, também, que não considero tudo que Pessoa escreveu genial e não me coibi de abordar aspectos do homem menos agradáveis, como a sua misoginia, um certo racismo, um certo elitismo, um possível anti-semitismo. Quanto a Lisboa, o meu enamoramento com a cidade começou há quase 35 anos e continua até hoje.
P – Terminar a escrita de um livro, que é também um acutilante e decisivo ensaio sobre o conjunto da obra do autor, com a vida como pano de fundo, levou-lhe mais de 12 anos. Será seguro afirmar que sente sobretudo libertação? Ou já se prepara para novos desafios?
R – Acertou. Não só me preparo, já me empenho num novo desafio de escrita. Mas não quero dizer mais.