Vive-se em Monchique uma permanente relação de sobressalto entre a beleza da paisagem e o fogo que a devora. Uma fatal atração criminosa que a cada verão se vai repetindo com mais frequência, devastando um território onde se julgava que nada mais havia para arder.
Por esses dias de fogo, a alma daquelas gentes como a paisagem queimada – muitas vezes ainda por cicatrizar do braseiro mal apagado do último incêndio -, assemelha-se a um cemitério fantasmagórico de fumo e cinzas para mais tarde vir a ressuscitar teimosamente com mais verde e vida nova. É a essa coragem para enfrentar o diabo nos olhos no inferno da sua própria casa, que o povo vai buscar a energia para vencer o desespero, dando-lhe forças e esperança para retomar novos caminhos.
E não faltam lugares onde a vida renasce a cada canto
No mapa não vem o cheiro do rosmaninho, da lavanda ou da esteva. Tampouco se ouve o cantar do grilo, do pintarroxo ou da cotovia, nem o fugir apressado da lebre a esconder-se ao fundo no vale. Mas, por ali e em cada lugar, a vida canta e cresce ao som de uma natureza quase edénica por entre montes e vales, debaixo de um céu azul e um mar ao longe. E mesmo que todos os anos o fogo volte a cobrir de cinza a terra queimada de outros anos, soarão sempre ainda mais fortes os trinados e gorjeios dos pássaros, e o ar encher-se-á novamente do perfume das flores com a força toda que a natureza lhes dá. E tudo segue por entre trilhos e cascatas, moinhos e memórias, azevinhos e medronheiros, carvalhos e magnólias, águias e borboletas. Uma riqueza de biodiversidade notável que se estende por toda a zona serrana da Fóia e da Picota. E onde emergem espaços de uma economia predominantemente agroflorestal e de transformação industrial ligada à pecuária, mais o termalismo e o turismo da natureza.
Já na sede do município, descendo em degraus pela encosta da serra, há o património identitário de uma cidade vista a partir do miradouro de S. Sebastião, com a sua igreja que guarda a imagem impregnada de tristeza de Nossa Senhora do Desterro, do século XVII, proveniente do abandonado convento franciscano.
E é por aqui que o viajante pode começar para um dia poder contar: fundando em 1631 por Pêro da Silva, que veio a ser vice-rei da Índia, nunca chegou a recuperar dos estragos do sismo de 1755. Ergue-se numa encosta de onde se avista um dos mais belos panoramas de Monchique e das serranias em volta. É na sua antiga quinta que se encontrava a secular magnólia, classificada de interesse público e tida como a mais antiga da Europa, trazida ainda pelo fundador do convento. Morreu há cinco anos, mas Monchique não deixa apagar a sua memória e foram plantadas outras no seu lugar.
Se entrar na igreja matriz do século XV, fixe o olhar no belo pórtico manuelino com colunas retorcidas que terminam em pináculos. Lá dentro, não deixe de apreciar o tesouro sacro de objetos de culto que pertenceram ao antigo convento do Desterro. No roteiro dos templos religiosos, ficam as igrejas da Misericórdia e a Ermida do Senhor dos Passos, com um único altar onde guarda a imagem de Jesus padroeiro, a mais venerada depois da Nossa Senhora da Conceição. E na aldeia de Marmalete, encontra a ermida de Santo António, e em Alferce uma igreja de tempos medievais. No cerro do Castelo, ali por perto, existem fortificações de muralhas de suposta origem romana.
E porque se fala de igrejas e santos, nada melhor do que subir ao cimo da Fóia – ao sítio mais alto da serra e de todo o Algarve -, e ficar com o céu ao alcance das mãos e um olhar que abarca o mundo todo em seu redor, avistando-se o Alentejo a Norte, até à Arrábida, e a sul o mar. O deslumbramento do verde e do azul do céu. E pela encosta da serra sobressai o casario disperso como um estendal de roupa branca corando ao sol.
A Fóia pode ser o ponto de partida para um passeio a pé de descoberta da natureza. Um trilho de mais de seis quilómetros que passa pelo Miradouro, Pegões, Fontinha e Montes da Fóia, até Belém. Um percurso entre riachos de água corrente, urzes, rosmaninho e a raríssima rosa albardeira.
Do outro lado fica a proposta para uma caminhada de cerca de dez quilómetros, que pode começar no bioparque das Caldas lá em baixo, passando por um sem número de sítios, subindo à Picota e terminando no lugar do Esgravatadouro. Interessante é o chamado trilho dos Moinhos da lã. Percorrendo a ribeira de Seixe, o viajante encontrará o Barranco dos Pisões, o Moinho do Poucochinho, passando por Cascalho dos Frades e terminando na Costaneira da Fóia. Prosseguindo a pé por entre o verde e a água fresca não perca a aldeia abandonada da cascata do Barbelote, e as do Chilrão e Penedos do Buraco.
A história de Monchique está associada à presença dos romanos nas Caldas, atraídos pelo poder curativo das suas águas. E que hoje constitui uma unidade hoteleira de repouso termal muito procurada, com banhos e massagens e uma linha de engarrafamento e comercialização de água mineral. Pelos tempos fora, ainda que muito lentamente, a serra foi-se desenvolvendo e, no século XVI, tornara-se já numa povoação com alguma importância para receber a visita do rei D. Sebastião na sua jornada pelo Alentejo e Algarve em 1573, designando-a por nova Sintra. E só a oposição da cidade vizinha de Silves impediu que lhe fosse concedido então o estatuto de vila e que ganhasse a autonomia administrativa pretendida, o que só viria a conhecer dois séculos mais tarde.
Antes de D. Sebastião, a história regista a presença de D. João II, que aqui veio a conselho médico em busca de cura para a doença que o apoquentava e de que viria a morrer dias depois em casa de Álvaro de Ataíde, alcaide mor de Alvor, a 25 de outubro de 1495. Aqui, nas termas, refere Garcia de Resende, cronista do reino e homem de sua alta confiança, »sentiu-se mui contente«, saiu em caçada ao javali e fez mesmo »luta de braço«. Foi uma última luta pela vida, curta e sofrida. Ele que foi o homem dos olhares futuros sobre os mares e as tormentas, que revolucionou a geografia e a história do mundo, saiu daqui retirando-se resignado para preparar a sua morte, junto ao mar.
Nos dias que correm, antes da chegada às Caldas, na estrada que vem de Portimão, num sítio chamado Vale de Boi, há uma antiga quinta povoada com mais de uma centena de variedades de aves, póneis e cabras anãs, uma carvoaria e uma destilaria de medronho. O parque temático da Mina, como é conhecido, era uma casa e propriedade das famílias mais bastadas da serra de Monchique, onde se pode observar a sala dos relógios, a sala de costura e a sala de música com uma grafonola, um piano, a lareira e uma colecção de cachimbos. E muito mais a merecer uma demorada visita.
Mas se há registo curioso sobre as origens dos monchiquenses, fica um estudo descoberto por Nuno Campos Inácio nas suas pesquisas genealógicas. Diz ele: “Descobri com curiosidade que Monchique, no século XVI, foi uma terra povoada por gente vinda do Porto e de Trás-os-Montes. É curioso pensar o que é que terá motivado estas pessoas a virem para cá?»
O mesmo se dirá de umas plantas que ali resistem aos fogos e ao tempo. É o caso de uma das espécies únicas que só vivem na encosta da Fóia virada a norte. Chamam-lhe adelfas, existem em pequenos arbustos e sobrevivem há milhares de anos. As suas flores, de um rosa arroxeado, tornam-na sedutora e atraente. Mas, afinal, tem tanto de bonita como do veneno que contém. E corre acerca dela o que se conta e o povo diz com alguma malícia: que os antigos recomendavam que se servisse um chá das suas flores, às sogras e ao marido ou mulher com quem a coisa dos amores não andasse já muito bem. Bastava fazer esse remédio pouco santo para se verem livre deles. E para compor o ramalhete não se deixe de lado da flora selvagem uma outra planta carnívora de cheiro intenso e adocicado a quem as moscas e os insectos não conseguem, resistir. Atraídos pela aparência, caem adormecidas nos seus braços onde acabam por morrer. Sedução fatal!
Por entre esta riqueza de biológica multiplicidade, vai surdamente crescendo o seu inimigo mortal. Se não lhe puserem cobro, proibindo a sua expansão crescente todos os anos na proporção direta da retórica das promessas políticas, o eucalipto, espécie protegida de interesses poderosos mais ou menos ocultos – é dele e deles que aqui se fala -, irá provocar no prazo de meio século a maior catástrofe de desertificação ambiental da serra de Monchique e de toda a riqueza natural que hoje ainda se pode anotar e usufruir como oferta rara, única e gratuita.
Voltando à cidade, onde a vida passa devagar, Monchique com as suas chaminés de saia, resistiu à massificação turística do litoral algarvio, constituindo hoje uma alternativa complementar como turismo ambiental. Das iniciativas locais destaca-se desde logo a Feira dos Enchidos tradicionais e uma Mostra de Artesanato com realce para os trabalhos em cestaria, lãs, ferragens e as célebres cadeiras romanas de tesoura. O linho foi noutros tempos cultivado no concelho onde era fiado e tecido na famosa unidade industrial que existia na chamada de fábrica da Mataporcas. Era ali que se teciam os sólidos »sorrobecos, orianos e estopas de tempos antigos«.
Mas se há produto que faz parte da identidade de Monchique é a aguardente de medronho. As destilarias existentes só são devidamente certificadas mediante o cumprimento de normas e condições técnicas rigorosas. Na estila, o medronho é fermentado por meio de enzimas naturais e, depois destilado vagarosamente em alambiques de cobre.
Depois de uma boa refeição de besnegas ou caldo mouro, e acompanhada de um doce e bolo de tacho, há quem não consiga resistir a uma boa pinga nem a troque pelo melhor whisky deste mundo! E repetir o gesto sem tonturas!
Referências e citações: Publicações RTA e CM Monchique; outras.