O SAL E A SALMOURA
Há mais de década e meia, quando Sócrates reinava no império lusitano, o autor destas linhas suscitou pública e parlamentarmente em repetidas ocasiões a questão da dessalinização da água do mar, a abordagem das novas técnicas da osmose inversa e como outros países estavam a avançar nesse sentido como forma de reforçar o abastecimento de grandes cidades cada vez mais carentes do precioso líquido. Ninguém quis saber, apesar dos efeitos das alterações climáticas já se estarem a fazer sentir em zonas geográficas como Portugal, e nomeadamente o Algarve, com períodos de seca prolongada, e progressiva redução dos índices de pluviosidade. O sistema de barragens Funcho-Odelouca-Beliche-Odeleite parecia garantir água nas torneiras até à eternidade, à prova de muitos anos seguidos de chuva minguada. Foram as obras mais estruturantes, e o dinheiro melhor gasto no Algarve até hoje. Mas, como se vê pelos dias que correm, já não são um garante absoluto.
“[dessalinizadora] Vigilância cívica impõe-se! Há muitos milhões em jogo, e há gente gulosa que gosta mais de sal que de açúcar…“
E numa emergência que até agora só afectou a rega de jardins públicos ou o funcionamento de piscinas municipais, a Águas do Algarve afadiga-se a fazer avançar o projecto de construção de uma grande dessalinizadora na Região, numa lufa-lufa para agarrar algum dinheirinho do salvífico PRR. Ainda bem. Mais vale tarde que nunca. Mas atenção! A pressa é inimiga da perfeição. Tal como há quinze anos, que se tenha consciência dos impactos visuais, ambientais e funcionais de tal estrutura, que desaconselhariam à partida uma demasiada proximidade da costa. E que o último dos critérios de escolha da localização de uma mega-fábrica que ocupará o equivalente a dezenas de campos de futebol, a operar 24×24 nos 365 dias do ano, seja fazer fretes a certos interesses imobiliários de amigalhaços. Estão debaixo de olho. Vigilância cívica impõe-se! Há muitos milhões em jogo, e há gente gulosa que gosta mais de sal que de açúcar…
MARQUISES…
O portuguesinho médio encaixa bem na caricatura dos “bons malandros”, que Mário Zambujal tão bem descreveu. Se puder contornar a lei, contorna. Se puder passar à frente da fila, passa. Se puder meter uma cunha para obter qualquer coisa, mete. Se puder tirar uma vantagem, por pequena que seja, tira. Se puder fintar o radar, finta. Se puder não pagar imposto, não paga. É basicamente gente boa, pacífica, honesta quanto baste e trabalhadora se for preciso, gente porreira, em suma. Mas tem destas coisas, uma certa tendência para a barraquinha, o anexo, a marquise, no caso vertente. Esta cacofonia urbanística vem de longe, um traço terceiro-mundista que não dá sinais de abrandar. Há duas razões que determinam o fecho de varandas nas fachadas dos prédios das nossas vilas e cidades: a necessidade absoluta de espaço habitacional de uns, e a chico espertice e o oportunismo puro de outros. Os jovens ficam em casa dos pais até mais tarde, depois vêm netos, a tendência só pode ser para piorar. O sentido estético raramente conta, utilizam-se alumínios de todos os formatos e feitios, simples, lacados, anodizados de cores diversas.
A maioria das câmaras municipais assobia para o lado, os autarcas lavam as mãos, o assunto queima e é chato. Os arquitectos não contam para este campeonato. Os condomínios, cheios de prevaricadores, não actuam, e se actuam, a justiça tarda ou não existe. Os factores térmicos, acústicos e estéticos são ignorados. As regras urbanísticas são subvertidas com o aumento da área habitacional dos fogos e o aumento não contabilizado da densidade populacional. É impossível colocar fim a isto, seria uma revolução. O que está, está, prescreveu a infracção. Mas talvez se pudessem combater novas situações, e apoiar quem quisesse regenerar o existente. Resta o caso singular da marquise de luxo do Cristiano Ronaldo em Lisboa. O “coitado” pagou o preço da popularidade, da fortuna e da fama. Mobilizou-se um coro nacional de críticas e, por uma vez, uma marquise foi abaixo à vista de toda a gente.
…& ESPLANADAS ILDA.
Uma variante desta tendência são as esplanadas de restaurantes, bares e cafés, que diferem por ocuparem o espaço público, que pertence a todos. Ressalve-se desde já que as esplanadas são muito importantes para a economia dos pequenos negócios, existem em toda a parte do mundo e são, regra geral, espaços agradáveis de convívio e usufruto do ar livre aplicado a outros pequenos prazeres.
O problema são os abusos, as violações grosseiras. As esplanadas explodiram em Portugal a cavalo do Covid, era urgente a sobrevivência dos comércios, a preservação dos postos de trabalho. Compreende-se. Assim, ocuparam-se passeios, estradas e estacionamentos muito para lá do normal e do equilíbrio razoável entre espaço de passagem e ocupação privada do espaço público. Passada a emergência, consumou-se a permanência. O temporário tornou-se definitivo. O transitório ficou fixo, eterno se possível. Há sítios onde os peões têm dificuldade em passar.
Existem casos com poucas exigências estéticas. Tudo começa com painéis laterais de protecção do vento. Passam a cortinados de ferro, de alumínio, de vidro, fechados com cobertura e portas trancadas. Fica a barraca armada. A alvenaria à distância de um passo. Proliferam espaços comerciais com áreas mínimas no interior, e áreas máximas no exterior. Sai mais barato o investimento. Espera-se, pelo menos, que as autarquias salvaguardem os direitos de trânsito pedonal e cobrem as rendas devidas pela ocupação do que nos pertence.
* O autor não escreve segundo o acordo ortográfico