O mês passado, devido ao tema que decidi abordar — “Porto de Recreio de Faro: Crime Ambiental ou Alternativa Sustentável?” —, não nos foi possível realizar o Café Filosófico (CF) no local que o tem abrigado durante os últimos dois anos. Ao longo dessa colaboração o CF teve sempre um acolhimento excelente, que cumpre sublinhar.
A decisão de impedimento foi totalmente inesperada e, aparentemente, resultou de uma colisão entre certos interesses comerciais da organização empresarial que costumava acolher o CF e a posição que nesse artigo se defendia relativamente à localização do Porto de Recreio de Faro. Tratou-se de um artigo de Ética Ambiental, baseado em estudos científicos, nunca a confrontação com estratégias empresariais, ademais desconhecidas.
Não nos cabe levantar suspeitas sobre o que haverá ou poderá haver de tão grave e sério, que justifique censurar um debate filosófico-ambiental.
O CF é um espaço de reflexão e livre pensamento. Portanto, não se lhe coloca a questão da sensibilidade ou inconveniência que um determinado assunto possa suscitar a terceiros.
Por outro lado, o CF honra o Princípio do contraditório, pelo qual se rege toda a jurisdição moderna democrática. Este princípio salvaguarda a possibilidade de qualquer parte implicada num determinado assunto poder expressar-se e ser ouvida. Quer isto dizer que se alguém, cidadão ou instituição, tivesse a intenção de intervir no CF com uma posição não só diferente, mas quiçá contraditória àquela que se apresenta no artigo em questão, teria tido a oportunidade de o fazer. Melhor dito, essa posição teria sido particularmente bem-vinda. Enriquecer o debate, recusar o monolitismo, são propósitos básicos do CF.
Este, digamos, imperativo para a não-realização do CF no seu local até então habitual, traduz-se, implicitamente, numa tentativa de lhe retirar legitimidade, razão, ou direito, por parte de quem não se dispôs ao contraditório, invocando informação, evidência ou prova de que aquilo que se afirma no artigo seria porventura incorrecto, inverosímil ou atentatório da dignidade de algo ou de alguém. O facto do artigo, aparentemente, não ser aderente ao interesse de uma dada organização, não pode ser pretexto para qualquer atitude discricionária.
Não é alheio ao entendimento sobre o sentido desta atitude o facto de Portugal ter uma longa tradição de autoritarismo (político, social, cultural) na sua história recente, interrompida pela construção da democracia pós-1974. Não é, também, alheia a esse entendimento a deriva autoritária/populista contemporânea, muito presente nas designadas “democracias ocidentais”, constituindo uma ameaça real às nossas sociedades. A deterioração do viver democrático, a emergência da fúria xenófoba e racista, entre outras tragédias do nosso quotidiano, é tema primordial da reflexão filosófica. Qual o sentido da vida quando é a negação da vida que se justapõe à paz e à harmonia social?
Em Portugal, lembramo-nos ainda que o lápis azul da censura e a ausência de liberdade de expressão a todos limitava e diminuía. Seja de forma violenta, seja de forma dissimulada, seja pela chantagem (p.ex. sobre o ganha-pão), censura e coação foram, são, serão sempre fenómenos e ações da natureza idêntica. Por vezes, as ameaças de retaliação são explícitas, outras vezes são veladas, produzindo uma verdadeira auto-censura. Essa vulnerabilidade pode jogar a favor de organizações (empresariais, políticas ou outras) que tenham o propósito de desfazer qualquer impulso contestatário.
No caso que já foi objeto de debate, interrogámo-nos sobre o significado da destruição de uma pradaria marinha — equivalente a 200 hectares de floresta a arder — e da matança de milhares de bebés de várias espécies marítimas. Qualquer que seja o ângulo de análise do problema, a resposta nunca pode ser a indiferença; é para a filosofia inaceitável que isso não configure um conflito ético ou, na menor das consequências, um pequeno calafrio de hesitação e um impulso de reflexão.
O treino para não pensar, para se fechar, para considerar ser melhor não saber e não se implicar, o treino de obedecer cegamente são as formas anti-cidadãs que nos contaminam inexoravelmente. Vivemos uma época na qual glória e pusilanimidade se irmanam! Pergunto-me se as guerras não abrandariam se cada um se atrevesse a pensar, a discutir a legitimidade da guia de marcha…
Na mitologia hindu o deus Xiva, criador do yoga, é apresentado dançando e pisando um anão que simboliza a maldade e a ignorância. De facto, a ignorância pode ser a responsável por muita maldade.
Na circunstância, o tal artigo (supostamente controverso) de que sou autora visava, justamente, a desocultação pelo esclarecimento — um modesto contributo ao combate à ignorância. Talvez uma apresentação, de forma bem fundamentada, dos argumentos contrários àqueles que apresentei, tivessem conduzido a uma profícua discussão e à única conclusão que me autorizo impor à minha iniciativa: a de que, filosofando em conjunto, pudéssemos ter-nos dado conta de que o artigo é a favor de todos nós — da humanidade e do planeta.
E, assim, que interesses estritamente particulares não podem sobrepor-se ao interesse da comunidade, da humanidade e do planeta. Não estou a dramatizar, é disto mesmo que se trata. De que servirão rentabilidade e lucro quando não houver ar para respirar, nem peixe para pescar?
Por paradoxal que pareça, caso o CF tivesse tido a oportunidade de uma reflexão por contraditório, talvez até se pudesse ter consensualizado que a alternativa sustentável que nesse artigo se apresenta seria, muito provavelmente, capaz de gerar maiores dividendos, sendo uma economia sustentável e abraçando o ambiente.
Entidades públicas e partidos políticos houve que, tendo participado nos cafés filosóficos sobre este assunto ― sim, sempre se realizaram, 2 em Tavira, em Português e Inglês, como vem sendo habitual, e um em Faro que reuniu quase 30 pessoas ―, reviram a sua posição. Porque a ignorância é muitas vezes responsável pelos males do mundo, como há milénios já os hindus sabiam.
Partilho aqui a reflexão de um dos participantes do CF sobre este assunto: — “’Expulsar os poetas da cidade’ — boa questão filosófica (acho que nunca a discutimos). Expulsar a filosofia da cidade, não tendo o mesmo valor metafórico e filosófico da história dos ditos ‘poetas’, não pode ser uma surpresa. Quer dizer, a cidade (não a ‘ideal’, mas aquela que hoje nos molda) há muito prescindiu dos cidadãos. Uma cidade, pois, sem reflexão cidadã. Enquanto as acções e ideias de quem nela habita forem relativamente anódinas, ninguém nota o certo incómodo subterrâneo que elas encerram. Mas quando vêm à superfície e provocam alguma erosão, salta prontamente a mola da vigilância e da autoridade.”
Neste ano de 2024, que agora se inaugura, comemoram-se 50 anos do 25 de Abril. De que serviram a revolução e os cravos quando a democracia periga, quando o vírus autoritário grassa dentro de nós?
Café Filosófico: Democracia? | 18 de Janeiro | 18:30 – 20:00 | Clube de Tavira | 5€
Inscrições: [email protected]
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
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