O Café Filosófico celebra este mês de Maio o seu nono aniversário. É um prazer e um privilégio poder contribuir para que a filosofia tenha voz na actualidade. Voz não, vozes! Por isso mesmo, de vez em quando, empresto a minha voz à de um outro filósofo, traduzindo aqui excertos de artigos ou livros que não estão acessíveis em português. É o que faço hoje com o artigo “Rumo a uma consciência ecológica” publicado em 2017, na revista Quaderns de la Mediterrània 25, da autoria do filósofo espanhol contemporâneo Jordi Pigem.
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“Os quatro cavaleiros
Tudo está em mudança.
Ser humano nunca foi fácil, e menos agora.
O horizonte que vinha norteando as sociedades modernas está a rachar pelos quatro costados. De cada um desses quatro lados aparece, inesperadamente, um cavaleiro cavalgando ameaçadoramente. Esses quatro cavaleiros quebram a miragem da racionalidade moderna e as certezas que a acompanhavam. O primeiro cavaleiro, o mais visível e estridente, aquele que atinge primeiro e monopoliza a atenção é o da crise económica, não prevista pelos manuais de economia, não resolvido pelos supostos especialistas, cada vez mais difícil para mais e mais pessoas.
O segundo cavaleiro é o da crise ética que acompanha a crise económica: a ganância e a irresponsabilidade que estão na sua raiz, o despotismo com que se obriga a uma maioria a pagar pelo delírio de uma minoria poderosa (a oligarquia financeira) que continua a manter ou a aumentar os seus privilégios. Tal como Saturno devora os seus filhos, o capitalismo ataca-se a si próprio: em países como a Espanha, a praga do desemprego atinge mais de metade dos jovens; em países como os Estados Unidos, os jovens, para estudar, têm de contratar enormes dívidas que, durante o resto da sua juventude, irão mantê-los acorrentados ao sistema financeiro.
O terceiro cavaleiro é o da crise ecológica. Nós estamos a arruinar a base vital que nos sustenta, com consequências que já são trágicas para muitas espécies e ecossistemas, para numerosas comunidades humanas, e, com um risco crescente de que o planeta, como um todo, entre numa fase de transformações abruptas e irreversíveis que tornariam muito difícil a continuidade da vida humana tal como a conhecemos.
O quarto cavaleiro, menos óbvio, mas não por esse motivo menos perturbador, é o da crise epistémica, ou seja, a crise dos nossos modelos de conhecimento, que estão cada vez mais longe da realidade que procuram explicar. Isto é evidente nas ramificações teóricas do pensamento tecnocrático, mas também o é em muitas disciplinas científicas nas quais velhas certezas caem por terra, à medida que surgem perguntas novas com um escopo cada vez maior. Há um século que a física quântica começou a inaugurar uma nova forma de compreender a realidade que ainda não conseguimos assimilar.
Como no Apocalipse, palavra que na verdade significa revelação, depois dos quatro cavaleiros da incerteza dos nossos dias, deve surgir um novo céu e uma nova terra: uma nova realidade.
A redoma cognitiva
Até ontem, o crescimento económico e material parecia não ter limites. Acreditávamos que o progresso nunca pararia de acelerar e sempre nos daria mais prosperidade e fraternidade. Mas hoje sabemos que o nosso rumo não é sustentável na esfera económica, energética, ecológica ou psicológica. Enquanto a economia estava a crescer, poderíamos ignorar o aumento de desigualdades e deterioração ecológica, ou sonhar com que isso seria compensado pelo boom económico. Agora não. A redoma cognitiva começa a desaparecer: o mundo real existe e bate fortemente à nossa porta, por exemplo na forma de mudanças climáticas e escassez de matérias-primas. As crises inter-relacionadas do mundo de hoje colocam-nos, à escala planetária e à escala pessoal, ante um rito de passagem sem precedentes.
Quanto vale?
Uma economia sensata reflectiria nos preços das coisas o seu verdadeiro custo social e ecológico. Hoje em dia, a maior parte da produção externaliza os seus custos, cobrando alegremente o seu preço à natureza, aos países do Sul e aos nossos descendentes.
Está actualmente em curso um importante processo de reavaliação a todos os níveis. O estudo internacional A Economia dos Ecossistemas e A Biodiversidade é um exemplo de como começamos a reconhecer o valor dos serviços que os ecossistemas fornecem às comunidades humanas. [Este tema do capital natural já foi abordado por mim no artigo intitulado Expo-Faro publicado no passado mês de Março] Por exemplo, foi calculado que o valor global de polinização (que as abelhas nos dão, além de produzirem mel) é de 153 mil milhões de euros ao ano. Durante séculos temos sido míopes quanto ao valor da natureza. A nossa mente calculista só viu o que lhe está mais próximo: figuras e abstrações, longe do ritmo do mundo. Dada esta miopia, estudos [como o referido acima], oferecem-nos óculos com lentes grossas para que comecemos a perceber o valor (apenas económico) do que nos rodeia. É um primeiro passo. Mas a teia da vida terá sempre um valor incomparavelmente maior que o das economias humanas. Os ecossistemas e a biodiversidade constituem a matriz do equilíbrio planetário que nos sustém. Sem eles a humanidade desapareceria e com ela toda a produção das economias mundiais: o produto mundial bruto valeria zero. Em comparação com o valor do produto mundial bruto, o valor económico da rede da vida é infinito.
Conectar com a natureza
Segundo o norte-americano Richard Louv, [jornalista e fundador do movimento Criança e Natureza], hoje sofremos, sobretudo a geração mais jovem, da síndrome do déficit de natureza. Depois de milhares de gerações em que as crianças cresceram ao ar livre, de algumas gerações a esta parte elas passaram a ficar a maior parte do dia dentro dos muros da escola ou em casa. A crescente incidência, na infância e adolescência, da síndrome de déficit de atenção e hiperatividade, de depressão, ansiedade e obesidade, podem estar relacionadas com o nosso déficit da natureza? Louv pensa que sim. Como remédio, aconselha os pais a fazerem todo o possível para que os seus filhos passem mais tempo ao ar livre. Nas crianças que têm uma maior oportunidade de se conectar com natureza, a síndrome de déficit de atenção e a hiperatividade são significativamente reduzidos. O maior contacto com a natureza também ajuda a aliviar a depressão e estimula a intuição, a imaginação e a criatividade. Para as crianças, a natureza é uma professora muito melhor do que uma televisão ou uma tela de computador.
Nos últimos anos, foi desenvolvida uma teoria da recuperação da atenção, [denominada] teoria da restauração, segundo a qual nos concentramos melhor depois de ter estado na natureza, ou mesmo apenas contemplando a reprodução de uma paisagem.
Por sua vez, o eminente biólogo norte-americano E.O. Wilson fala da nossa biofilia inata: todos temos uma necessidade instintiva de nos conectarmos com a natureza. Wilson também sugere que, de uma forma puramente artificial a capacidade mental e a saúde psicológica tendem a atrofiar-se. Plotino (205-270), o grande filósofo da antiguidade clássica tardia, afirmou que a psique “torna-se aquilo que contempla. A nossa mente expande-se quando contemplamos o horizonte do alto de uma montanha ou da costa. Por outro lado, tende a contrair-se (e por vezes a concentrar-se) quando está num espaço fechado. Diversos estudos realizados em hospitais mostram que quartos com uma boa vista podem acelerar a recuperação do paciente – talvez, Plotino diria, porque sua alma se expande e ajuda assim a curar o corpo.
O bem-estar universal
Sabemos que o verdadeiro bem-estar não depende da acumulação contínua de bens materiais, mas de desenvolver uma vida cheia de sentido num contexto social cooperativo e em harmonia com um ambiente natural que mantém a sua integridade. Para alcançar uma sociedade sustentável é necessário desvincular o bem-estar do ter muito, ou seja, separar o nosso senso de identidade dos bens materiais, dos quais nunca teremos o suficiente, e basear a auto-estima não em ter mas em ser, desenvolvendo uma identidade mais participativa, mais fluida e mais consciente da nossa interdependência com o resto do mundo.”
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Jordi Pidgem publicou este artigo há 7 anos atrás, o que aqui diz não apenas se mantém actual mas intensificou a sua pertinência. Precisamos urgentemente de arrepiar caminho: reconectar com a nossa casa que é o planeta que habitamos e acordar cada dia gratos, porque o milagre da vida aconteceu, uma vez mais. Entender com o coração que não possuímos a Terra, pelo contrário, somos nós que lhe pertencemos. Então??? De que está à espera? Levante-se da cama e leve os seus filhos a brincar nas árvores, esta manhã.
Cafés Filosóficos Maio 2024
Clube de Tavira 18:30 – 20:00
14 em Português | Contribuição: 5€
15 em Inglês | Contribuição: 10€
Inscrições: [email protected]
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
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