O dia era de compromisso histórico e de regozijo, celebrado num barco parado a meio do rio, entre Sanlúcar e Alcoutim.
Foi nessa fronteira de água que se apagou o fogo que lavrava há alguns anos entre Portugal e Castela. Naquele palco, com um abraço e um aperto de mãos, os reis D. Fernando e Henrique II selaram o fim das hostilidades no tratado que ficou conhecido como as Pazes de Alcoutim.
Corria o ano de 1397, 21 de março. O acordo estipulava que o soberano português se comprometia a manter boas relações com o monarca de França que juntamente com o papa Gregório XI, intermediaram o acordo de paz. E havia ainda uma cláusula que obrigava ao casamento do rei português com Dª. Leonor, filha do rei de Castela.
No fim de contas, não se verificou nem uma coisa nem outra, porque um ano depois, o Tratado de Tui desobrigou D. Fernando do matrimónio pretendido por Castela, e a guerra dos Cem Anos que opôs a França à Inglaterra, anulou na prática também o outro compromisso.
Alcoutim havia sido conquistada aos mouros no reinado de D. Sancho II, em 1240, com a ajuda do exército de D. Paio Peres Correia, mas a praça só viria a ser repovoada pelo rei D. Dinis que lhe concede foral em 1304 e faz a sua doação à Ordem Militar de Santiago.
Naqueles anos, sendo embora uma pequena povoação fronteiriça no interior serrano algarvio, Alcoutim já era uma praça avançada de defesa do reino, e o Guadiana uma linha dissuasora de qualquer tentativa de assalto por parte dos vizinhos instalados à sua frente, na margem do outro lado.
Ao longo dos séculos, o rio foi sempre mais fronteira que abraço. Passagem de aventureiros e contrabandistas. Por ali corriam os minérios das jazidas de cobre, ferro e manganês que os romanos traziam rio abaixo até aos portos algarvios, tendo como destino final as terras do vasto império de Roma.
Com o tempo, sobretudo com o declínio da exploração mineira, o concelho de solos pobres para a atividade agrícola foi arrastado para um longo período de estagnação. E em décadas não muito distantes, o desvio da estrada nacional e os acessos difíceis aos grandes centros urbanos acentuaram o abandono e cavaram ainda mais o isolamento. Tudo isto, a que se junta a litoralização do desenvolvimento, ajudam a explicar o gradual empobrecimento que se prolonga até aos dias de hoje.
A guerra civil espanhola que levou ao encerramento da fronteira, foi outro acontecimento a agravar a situação que pode agora vir a ser revertida com a construção da ponte entres as duas margens – prometida e velha aspiração local -, juntando-se às boas acessibilidades, entretanto, construídas, aproximando Alcoutim dos grandes centros do litoral a sul, e do Alentejo a norte. E ao tão desejado desenvolvimento.
E não lhe faltam atrativos para encarar o futuro. Desde logo a fita azul do rio por onde sobem veleiros de todo o mundo, representando as potencialidades de um turismo náutico associado à natureza, que cada vez mais se vem tornando numa alternativa complementar aos destinos de sol e praia. Tornar o rio navegável até Mértola e transformar esta zona, das mais deprimidas do país, valorizando-a com projetos integrados que incluam os dois concelhos vizinhos e as zonas mineiras desativadas de S. Domingos e de rio Tinto, em parceria com a Espanha, constituiria, certamente, uma aposta forte para um futuro sustentável desse espaço transfronteiriço.
Mas por si só, Alcoutim tem muito para oferecer. Para além da náutica turística, existe um património vastíssimo com uma procura crescente pelo turismo da natureza. A sua paisagem rica e salpicada de tojo, estevas, flores silvestres e espécies raras de aves e outros animais, convida a um passeio a pé sem tempo, seguindo por atalhos e velhos caminhos que serpenteiam por vales e colinas e levam a pequenos povoados de casas brancas ou de xisto e à descoberta de um mundo feito de espantos.
Na vila, o castelo domina a paisagem de um e outro lado do rio e já era habitado no início da ocupação romana. E a partir dali descendo a encosta, percorrem-se as ruas estreitas até à beira rio onde se destaca a ermida de Santo António, provavelmente antiga capela privada da residência dos condes de Alcoutim. Depois de uma visita à igreja matriz edificada durante o século XIV, e passando para o outro lado por uma pequena ponte sobre a ribeira de Cadavais, a estrada conduz às ruínas do Castelo Velho, povoação islâmica fundada entre os séculos VIII e IX, protegida por muralhas e torres quadrangulares.
Importantes referências do seu passado pré-histórico, são os marcos da cultura megalítica um pouco por todo o território, entre o encanto das suas vilas e aldeias: Pereiro, Giões, Martim Longo e Vaqueiros, com um passeio pela marginal que acompanha o Guadiana desde a sede do concelho até à foz de Odeleite e que conduz o viajante ao Montinho das Laranjeiras, Álamo e a Guerreiros do Rio. Aqui, numa antiga escola, funciona um museu que dá a conhecer o Guadiana e a sua história.
E é do rio que se descobrem os bons sabores de uma gastronomia rica em muges, barbos, bordalos, achigãs e eirós grelhadas na brasa. Sem falar num prato de lampreia acabada de apanhar. E a ementa de carne de borrego ou de porco, javali e perdiz, ou uma refeição de lebre com feijão branco.
Sobrevoando todo este espaço, as águias de asa redonda e as cobreiras de visão telescópica, que em voos planados ou picados riscam o céu azul límpido e transparente, são o fascínio dos observadores de aves, com a atenção presa também no esvoaçar dos milhafres pretos e dos peneireiros, ou no cantar alegre dos pintassilgos e rouxinóis.
Um ar bucólico e uma oferta da natureza ao alcance de pouco menos de uma hora do cosmopolitismo dos hotéis e das praias, levando como recordação obras artísticas de um artesanato de mantas de trapos, colchas e toalhas de linho – feitas em teares de madeira -, rendas, xailes e chapéus de palha. Existem ainda trabalhos em latoaria e até recentemente as famosas bonecas de juta que saíam das mãos hábeis de quatro mulheres de Martim Longo para todo o mundo, recriando as atividades e costumes de um mundo rural antigo, distante e a caminho da extinção.
Quando o calor aperta, a solução é o rio. Sempre o rio. Um mergulho atrevido no cais para quem se possa aventurar a riscos calculados, ou, para descanso mais seguro, uma tarde bem passada em família na praia fluvial ali o lado.
Fontes: Publicações C.M. Alcoutim e RTA; outras.