“Espólio bibliográfico do artista Bartolomeu Cid dos Santos foi doado ao Município de Tavira”
Foi natural a satisfação sentida ao ler esta notícia nas publicações do “Postal do Algarve”. E esperei ver surgir um público reconhecimento pela elevação, dedicação e amor à cidade que tão significativo ato representa. O Bartolomeu Cid dos Santos, que transportou Tavira na alma e no coração, pertence à gesta daquela gente que se agiganta e sobressai, merecendo o nosso reconhecimento!
Não me substituindo a quem de direito e com habilitações, mas tão só numa manifestação de orgulhoso agradecimento, presto uma muito singela homenagem a este grande vulto da cultura nacional, que muito honrou Tavira, o Professor Bartolomeu Cid dos Santos, transcrevendo (devidamente autorizado), parte dum artigo do Professor Helder Macedo (outra personalidade de méritos incontornáveis da nossa cultural), onde é relatada a vivência dos exilados culturais, por essa Europa fora, onde Bartolomeu dos Santos surge como figura maior dessa memorável gesta cultural:
“A cultura portuguesa a partir da década de 1950 ficou a dever muito à ditadura. Explico: o ambiente fechado e repressivo em que Portugal vivia criou nos jovens aspirantes a pintores e escritores da minha geração o desejo de sair. E bolsas da recém-criada Fundação Calouste Gulbenkian permitiram que pelo menos alguns saíssem sem terem de enfrentar exageradas fomes ou degradantes trabalhos marginais, como os emigrantes que iam a salto e lá se amanhavam como pudessem…
… Nos fins dos anos cinquenta e início dos sessenta, Paris também foi atraindo outros jovens portugueses, entre os quais destaco o filósofo Fernando Gil, meu amigo de infância, que aí se doutorou e onde prosseguiu uma brilhante carreira universitária na École des Hautes Études en Sciences Sociales, que depois do 25 de Abril complementou com a formação de filósofos portugueses na Universidade Nova de Lisboa. …
… Entretanto, em Londres, conheci o João Cutileiro, o Bartolomeu Cid dos Santos e a Paula Rego. Os três encontraram-se na simultaneamente respeitabilíssima e aventurosa Slade School of Art e foi uma festa para todos. A Paula tinha um pai munificente e liberal; o Bartolomeu uma família protectora. Quem teve menos apoios foi o João Cutileiro…
… Dois ou três anos depois, a Menez trouxe para Londres a insuperável magia da sua pintura que seria música se não fosse poesia e seria poesia se não fosse pintura. Poucos ingleses deram por isso. Às vezes é necessário explicar-lhes tudo. Também não sei se entenderam quanto havia de iconoclasta na beleza harmoniosa da pintura do Eduardo Batarda que, nos primeiros anos da década de setenta, veio como bolseiro da Gulbenkian para o Royal College of Art. Por esse tempo, o João Vieira também residia em Londres e dava aulas noutra escola de arte. Para ensinar os ingleses a escrever todas as letras do alfabeto?…
… Dos meus amigos londrinos mais próximos, o Bartolomeu iria ser professor catedrático na Slade e a Paula veio a ser a pintora unanimemente celebrada que fez jus aos mais altos títulos honoríficos no Reino Unido. Até a tornaram Dame do Império Britânico…
… E também muitos aprenderam gravura com o Bartolomeu na Slade. Por essas e por outras é bom não esquecer que a obra da Paula Rego, bem como a do Bartolomeu dos Santos, foi primeiro reconhecida em Portugal. Isto também desde logo significa que, tal como os de “lá fora” em Paris, contribuíram para a renovação – diria mesmo para uma revolução – da cultura portuguesa dentro de Portugal. Aliás, no plano propriamente político, tanto o Bartolomeu como a Paula fizeram quadros abertamente críticos ao regime salazarista. Alguns de nós, em Paris e em Londres, teremos sido politicamente mais activos do que outros. Mas nenhum deixou de intervir, tão criativamente quanto pudesse, na vida cultural portuguesa. Ou seja, nunca confundimos o regime político opressor com o nosso país que esse regime oprimia.”
Helder Macedo
Nota: Após se ter jubilado da Slade School, Bartolomeu Cid dos Santos veio instalar-se em Tavira, criando a oficina de gravação OBS (réplica da londrina), inaugurada a 12 de agosto de 1995, que se mantém em atividade.
Bartolomeu Cid dos Santos faleceu aos 77 anos, em 21 de maio de 2008, e, por seu expresso desejo, as suas cinzas foram lançadas nas águas do rio Gilão.
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