Imbuído da tradição clássica, Pessoa escreve o poema As Ilhas Afortunadas que encontramos no livro Mensagem, publicado em 1934.
“Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
É a voz de alguém que nos fala,
Mas que, se escutamos, cala,
Por ter havido escutar.
E só se, meio dormindo,
Sem saber de ouvir ouvimos,
Que ela nos diz a esperança
A que, como uma criança
Dormente, a dormir sorrimos.
São ilhas afortunadas,
São terras sem ter lugar,
Onde o Rei mora esperando.
Mas, se vamos despertando,
Cala a voz, e há só o mar.”
Na primeira estrofe surge uma voz misteriosa que se distingue do som do mar. Porém, se se sente atendida, esta voz esconde-se: “se escutamos cala”. A segunda estrofe esclarece que a única forma de a ouvir é inadvertidamente, em períodos em que a vigília se desvanece mas ainda não estamos completamente adormecidos. Ao adormecer a mente racional vai-se dissipando para dar lugar a um outro modo de acolhimento, que é passivo, de uma atenção não dirigida e, só assim, estão criadas as condições para que se consiga escutar a voz misteriosa. A terceira estrofe indicia o projecto pessoano de advento do Quinto Império segundo o qual a nação portuguesa voltaria a ser um reino de grandes feitos, agora nos domínios ético e espiritual. Aí “o Rei mora esperando” com o gerúndio a indicar que a espera pode durar um tempo longo, indefinido, ao ponto de se transformar num lugar onde se habita. Mora-se na espera, está-se em suspenso, até que venha o tempo da vivência e da acção. Mas o gerúndio não é morte, pelo contrário, é permanência, e Pessoa parece querer incrementar a esperança, dizer-nos que levará o tempo que for necessário, mas esse novo reino virá.
No imaginário simbólico a ilha é um algures lugar mágico, uma espécie de paraíso não celestial, sem dúvida um mundo à parte. As Ilhas Afortunadas da Mitologia clássica, são o lugar para onde vão os seres virtuosos após a morte. À semelhança do que acontece com a dicotomia cristã de Céu e Inferno, o grego Reino dos Mortos ― Hades ― também se subdividia entre os paradisíacos Campos Elísios, parte integrante das Ilhas Afortunadas, para onde iam viver os falecidos homens impolutos, rodeados de paisagens verdes e floridas, passando os dias a desfrutar dos inúmeros prazeres aí oferecidos; e o Tártaro, zona terrível para onde os inimigos do Olimpo seriam enviados.
Curiosamente, a possível localização geográfica das Ilhas Afortunadas, também denominadas Ilhas dos Bem Aventurados ou Ilhas Abençoadas varia nos escritos clássicos entre a Ilha da Madeira, os Açores, as Canárias e Cabo Verde.
Eis A Ilha, poema de Carlos Tê a que Rui Veloso dá voz:“Fiz-me ao mar com lua cheia
A esse mar de ruas e cafés
Com vagas de olhos a rolar
Que nem me viam no convés
Tão cegas no seu vogar
E assim fui na monção
Perdido na imensidão
Deparei com uma ilha
Uma pequena maravilha
Meio submersa
Resistindo à toada
Deu-me dois dedos de conversa
Já cheia de andar calada
Tinha um olhar acanhado
E uma blusa azul-grená
Com o botão desapertado
E por dentro tão ousado
Um peito sem soutien
Ancoramos num rochedo
Sacudimos o sal e o medo
Falámos de música e cinema
Lia Fernando Pessoa
E às vezes também fazia um poema
E no cabelo vi-lhe conchas
E na boca uma pérola a brilhar
Despiu o olhar de defesa
Pôs-me o mapa sobre a mesa
Deu-me conta dessas ilhas
Arquipélagos ao luar
Com os areais estendidos
Contra a cegueira do mar
Esperando veleiros perdidos”
Quase sempre a Ilha é um símbolo feminino e representa uma área da psique humana que está “meio submersa” como se lê no poema de Carlos Tê, à qual só se consegue aceder “meio dormindo” como refere o poema de Fernando Pessoa. Simbolicamente a ilha aponta sempre para uma zona de mistério que não é alcançável pela consciência racional. Por outro lado, a ilha rodeada de água é também símbolo de isolamento. No meio filosófico conhece-se bem a expressão insularidade do pensamento.
Neste poema de Carlos Tê a ilha, afinal, é uma mulher solitária que apenas entra na conversa por “cheia de estar calada”. Tem a particularidade de ler Fernando Pessoa e de também se aventurar a poetisa. Esta mulher-ilha devia ser muito discreta, ao ponto de passar desapercebida, até ao momento em que encontrou o interlocutor certo: alguém que percebeu que estava diante de uma “pequena maravilha”. Se fosse uma maravilha grande, qualquer um a via, mas uma pequena maravilha requer subtileza. É preciso aproximar-se e olhar atentamente. A partir daí, só a intimidade permitirá que a maravilha se revele. Quando essa interioridade se abre, “pôs-me o mapa sobre a mesa”, a pessoa é um universo inteiro por desvendar.
Talvez existam pessoas-ilha, pessoas rodeadas de um mar que pode ser de preconceito ou de aversão, pessoas que não se deixam conhecer e que tão pouco têm o impulso no sentido de descobrir algo diferente de si próprias. Quiçá existam também pessoas arquipélago, constantemente a estabelecer ligações mais ou menos sinergéticas com outros. Porventura existirão pessoas-ilha-paradisíaca?
Que dizer agora das ilhas barreira, aqui mesmo ao lado? Ao contrário das ilhas solitárias no meio do oceano, onde as espécies evoluem praticamente isoladas do resto do mundo, com muito pouca conectividade com o meio envolvente, as ilhas barreira são um exemplo de interacção entre o meio terrestre e o oceano.
Porém, as ilhas barreira são extraordinariamente frágeis: são compostas por areia, sedimentos móveis que só são fixados pelas plantas das dunas. Estas plantas campeãs da sobrevivência também souberam resistir “ao sal e ao medo” aos ventos, ao sol, à dessecação… Muito poucas espécies conseguem vingar nestas condições extremas! As plantas das ilhas barreira estão constantemente em risco de ficar soterradas pelas areias que os ventos trazem, fazem um esforço enorme para emergir enquanto as suas raízes se estendem para baixo e para os lados, fixando as areias e tornando-se o esqueleto sustém das dunas. Cada vez que pensar em atravessar uma duna para cortar caminho, lembre-se do pisoteio e da destruição que pode estar a causar a estas plantas que são a condição sine qua non para que a duna exista. As ilhas barreira só crescem ou apenas se mantêm se a sua vegetação conseguir sobreviver. Se as plantas desaparecerem, a areia desagrega-se e o mar galgará as dunas e abrirá barras e mais barras até que as ilhas desapareçam completamente. Talvez existam também pessoas assim: que fazem da areia que se lhes atira para cima um desafio para se erguerem, e que apesar de toda a adversidade com que se deparam encontram força para sobreviver e ainda se tornam o amparo de outros à sua volta.
Paradoxalmente, apesar da sua fragilidade, as ilhas barreira são o garante de um ecossistema pujante altamente complexo, dinâmico e produtivo: as lagoas costeiras como a nossa Ria Formosa. Todos os benefícios que o homem delas retira não existiriam sem as ilhas barreira:
– Propiciam maternidades para muitas espécies, incluindo as comercialmente importantes, que pescamos e comemos: peixes (sargos, douradas, robalos, linguados, salmonetes); moluscos (polvos; chocos; bivalves); crustáceos (caranguejos; santolas; camarões), são, portanto, suporte da biodiversidade;
– O sapal e as ervas marinhas purificam água e realizam sequestro do chamado carbono azul, sobre o qual tratámos em Junho deste ano, sendo mais eficientes que as florestas verdes;
– Constituem bons portos de abrigo, tornam a navegação mais fácil, são fundamentais para as populações;
– São belíssimas e nelas nos deleitamos em todas as actividades culturais, de lazer, e estéticas que tão bem conhecemos;
Talvez a voz misteriosa que Pessoa escutou queira dizer-nos que o paraíso está já aqui, que os afortunados somos nós e que devíamos tudo fazer para preservar este ecossistema-maravilha.
Café Filosófico: As Ilhas Afortunadas de Pessoa e não só… | 19 de Outubro | 18:30 | AP Maria Nova Lounge Hotel, Tavira
5 € inclui água aromatizada/cálice de vinho | Inscrições: [email protected]
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
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