OS EXCESSOS DO CONSUMISMO
O tsunami publicitário engoliu definitivamente o espírito natalício, anexou Novembro à quadra sagrada do cristianismo. Onde havia altruísmo, sucedeu-se cobiça por presentes. O que era sobriedade, virou ostentação num arraial de luzes, enfeites e fogo-de-artifício. A felicidade imaterial das conexões humanas, da solidariedade e do senso de comunhão vai dando avassaladoramente lugar aos prazeres materiais, ao individualismo e à concorrência.
Falta chuva, para esfriar o consumismo. Falta frio quanto baste, para dar valor ao agasalho. Falta sinceridade no gesto, genuína fosse a quadra natalícia
O consumismo apropriou-se da celebração do Natal, transformou-se numa maratona de compras, em sprints “black friday”, um festival de descontos e promoções. O hoje idolatrado Pai Natal, criado no século XVI como símbolo do amor ao próximo ou da doação de bens sem olhar a retribuição, não passa hoje de um emblema comercial criado pela Coca-Cola no século passado como estímulo do imaginário das crianças, com as suas visitas fictícias de chaminé abaixo em ambiente de renas e de neve, mesmo onde não neva e quase nem chove sequer, como é o caso do Algarve. Resisto, e continuo a procurar a face genuína do Natal, a minha época do ano preferida, cujo espírito procuro prolongar pelo ano inteiro. Mas sinto-me cada vez mais derrotado, embora coerente.
Confesso-me incapaz de escrever melhor, pelo que me atrevo a seguidamente reproduzir, com a devida vénia ao Jornal do Algarve, e com o meu direito de autor, uma crónica que ali publiquei há 19 anos atrás.
NATAL ALGARVIO
Pode sonhar-se com o regresso à humildade, mas ele não será mais possível. Humano que está tocado pela sociedade dos prazeres, pelo gozo da abundância, pelo usufruto material, não volta atrás a pisar os caminhos da simplicidade e dos valores do simbolismo, da fraternidade verdadeira, da solidariedade sincera, longe do espelho, do holofote, do microfone. Falta chuva, para esfriar o consumismo. Falta frio quanto baste, para dar valor ao agasalho. Falta sinceridade no gesto, genuína fosse a quadra natalícia, não é, antecipado que está o calendário comercial do folclore de Natal em que tudo isto se transformou. As vésperas foram-se alargando sucessivamente, ao sabor do interesse mercantil.
Da semana de Natal, antecipou-se o princípio de Dezembro e, sabe-se agora, quando chegam brochuras comerciais a inundar as caixas de correio, e há cidades inteiras a engalanar-se de luzes eléctricas, que o Natal já saltou a cancela do mês de Novembro. E, de facto, o Natal começou, lá nos primórdios de há dois milénios, por ser a Festa da Luz. Jesus seria como que um sol tocando o mundo e o coração do homem. Também nesse tempo longínquo, o Natal foi saltitante, na busca da data do calendário. Digladiaram-se braços religiosos, para a Igreja do Ocidente, o Natal é a 25 de Dezembro, para a Igreja do Oriente, celebra-se a 6 de Janeiro.
Para as hordas do consumo, que percorrem com ansiedade as lojas dos gigantescos centros comerciais, em Faro como na Guia, das baixas tradicionais das cidades, em Faro como em Portimão, tudo parece indiferente à espiritualidade da quadra, em busca de mais uma saca de brinquedos fúteis, fugazes e inúteis, para alimentar o mimo dos meninos mimados da sociedade actual, que tudo querem e tudo obtêm, para deleite de pais, tios e avozinhos, que não lhes falte nada. Aos catraios, de hábitos burgueses. Claro que há o outro lado. Claro que há este muro que separa das vistas os sem-abrigo, os pobres envergonhados, os sem-emprego-sem-salário-sem-subsídio-de-Natal. Há gente que pouco come, e há gente que não convive, porque ninguém com eles convive, nem quer partilhar o calor de uma palavra amiga, de um conforto espiritual. Existem milhares de solidões por compreender, mesmo no meio da multidão que galga apressada as ruas do comércio, num tropel, num turbilhão, em busca não se sabe do quê. Quantos destes espíritos se disponibilizam para pensar que o Natal, verdadeiramente, deveria ser a Celebração do Nascimento, a Epifania, o Baptismo de Cristo num rio chamado Jordão, as Bodas de Caná.
Quantos fazem ideia das origens do Natal festivo nos tempos da Capadócia, de Constantinopla, de Milão, Cartago ou Alexandria? Não! Hoje, o que mais interessa é a invenção e a adoração dos ícones contemporâneos de uma figuração de Natal, com madeiros, prendas, muitas prendas, Pais Natal vestidos de um Pai Natal que nunca existiu, e prendas, muitas prendas, e cartões de Boas Festas impessoais, telefónicos, digitais, sem sombra de tinta, e de mão, e de vontade, e de sentimento, e mais prendas, mais prendas, muitas prendas. Ah!… que saudades daquele Natal simples que se fazia no Algarve. Um presépio em cada casa. O trabalho de ir à procura de pedaços de musgo, nas pedras húmidas dos valados. E lá se colocavam com esmero e premeditação, as peças todas, S. José, Sta. Maria, o Menino Jesus nas palhinhas deitado, os Reis Magos em adoração, e não faltavam jumentos, vaquinhas, camelos e demais elementos da decoração.
Ah!… que saudades de ver os mega presépios que os Bombeiros faziam na baixa de Faro, ao concurso. Ah, que sorte, que ainda há momentos de recolhimento nas igrejas do Algarve, na celebração da Missa do Galo, são momentos únicos, em vias de desaparecimento. Ali pode rever-se o trabalho dos pinta-santos algarvios, artesãos de Sta. Catarina da Fonte de Bispo, José Martins Murteira foi deles o maior, num século que já passou. E a Ceia, Senhores!, de canja, de galinha guisada, de arroz de galinha, hoje quase substituída pelos peitos dos patos de aviário, pelas pernas dos perus, de igual proveniência. Que Deus seja louvado, ainda há quem faça alguidares de filhós, empanadilhas, bolinhóis, broas de Natal, fatias douradas, bolos-rei. E ainda há quem nos cante à porta, quem nos alegre com danças e ladainhas, ferrinhos e acordeão, em grupos de charolas e janeireiros, com estandartes, dando o Menino Jesus a beijar, dentro de caixa ou de alcofa.
Que não se deixem morrer os combates de charolas de Alfandanga, grupos como as Matraqueiras da Fuzeta, o Alegria dos Cavacos, charoleiros de Vila Real de Santo António, Cacela, Alte, Montenegro, e tantos mais, que nas bandas do barlavento algarvio se chamam Joldras, e se encontram em Marmelete, vindos de Estômbar, Alcantarilha, Paderne e outros sítios, onde a época festiva do Natal ainda tem um toque algarvio, ainda não se rendeu, ainda persiste em existir. Kyrie eleison, no linguajar dos hebreus. “Senhor, tem piedade”, assim manda a tradição. Tem piedade daqueles que, no Algarve também, deixaram de se visitar, aos amigos, vizinhos e parentes, numa quadra que deveria significar aproximação. Reforço da comunidade, da família, louvação da criança. Festa da luz. Que terra mais luminosa em toda a Europa que o Algarve?
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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