“Sentir tudo de todas as maneiras / Ter todas as opiniões
/ Ser sincero contradizendo-se a cada minuto”
Álvaro de Campos
A Biblioteca Municipal Álvaro de Campos foi inaugurada a 24 de Junho de 2005, dia de São João padroeiro da cidade de Tavira desde o séc. XVII.
De antiga cadeia a nova biblioteca para trazer à cidade mais livros para mentes mais livres!
Trata-se de uma biblioteca com uma arquitectura híbrida que procura equilibrar a estética histórica com a contemporaneidade, tem espaços únicos e multifuncionais que juntam as paredes brancas às paredes metálicas da entrada que culminam com um portão largo e propositadamente enferrujado.
Quem olha para a Biblioteca a partir da Ermida de São Sebastião, mesmo em frente, repara de imediato na platibanda coroada por ameias decorativas formada por três partes em que a parte central, mais elevada, ostenta o escudo nacional.
É possível ver um falso frontão com a inscrição “CADEIA CIVIL” entre duas janelas rectangulares gradeadas e molduradas a cantaria como se vê na imagem acima.
Gosto imenso de saber o que existia no espaço onde se instala uma biblioteca, porque há sempre surpresas! Já encontrei uma biblioteca no edifício de uma maternidade, de um teatro, de um convento, de um palácio e outra onde foi uma casa mortuária, outra ainda onde foi uma escola, mas é a primeira vez que encontro uma biblioteca no espaço onde existiu uma prisão.
Esta antiga cadeia civil de Tavira foi construída pelo mestre construtor Sezinando Azinheira a partir de 1914 e veio a ser reabilitada a partir de 2002 para se tornar na Biblioteca Municipal de Tavira com um projecto da autoria do arquitecto Carrilho da Graça (Vencedor do Prémio Pessoa em 2008).
A solução arquitectónica encontrada para este equipamento passou por manter, segundo palavras do referido arquitecto, “a presença poética da memória do edifício em harmonia” com os diferentes espaços que o compõem.
O legado cultural que daria origem à criação de uma biblioteca, em Tavira, pertenceu ao benemérito José Joaquim Jara deixado em testamento de 24 de Julho de 1890.
Sempre que escrevo sobre uma biblioteca procuro aspectos ou factos menos conhecidos e descobri uma pequena janela, nunca a tinha visto antes, do tempo em que o edifício era uma cadeia e que se mantém no local original em contraste com a nova arquitectura.
A propósito da inusitada simbiose de livros que libertam e actos que prendem leitores nos presídios, tive a oportunidade de falar com familiares de um ilustre utente desta cadeia nos anos 30. O mais curioso foi que antes de cumprir a pena tinha conhecido pessoalmente Fernando Pessoa no Café Martinho da Arcada em Lisboa.
Na altura nem Fernando Pessoa sonhava que teria uma Biblioteca com o nome de um dos seus heterónimos na cadeia civil de Tavira, nem o outro senhor sabia que esteve preso numa futura casa dos livros.
O poeta Fernando Pessoa tem ligação a Tavira por razões familiares. O seu bisavô, Daniel Pessoa e Cunha, natural de Serpa, veio em 1806 para Tavira como médico militar com funções no Hospital Militar de Tavira tendo chegado a Director do Hospital. Casou com D. Joana Xavier Pereira de Araújo e Sousa e desse casamento nasceram vários filhos, entre eles, Joaquim António de Araújo Pessoa, que foi General em Tavira e teve vários filhos. Um dos quais, Joaquim Seabra Pessoa que casou com Maria Madalena Pereira Nogueira e tiveram a 13 de Junho de 1888 o filho Fernando António Nogueira Pessoa.
Faz precisamente nesta semana 136 anos que o poeta nasceu em Lisboa, mas talvez gostasse de ter nascido em Tavira! Foi nesta cidade que Fernando Pessoa fez nascer o heterónimo Álvaro de Campos, engenheiro naval e um dos heterónimos mais conhecidos, verdadeiro alter ego de Fernando Pessoa, sem esquecer os heterónimos Alberto Caeiro e Ricardo Reis.
Em vários locais de Tavira é possível encontrar poemas de Álvaro de Campos, nomeadamente na própria Biblioteca e na Casa Álvaro de Campos, Associação Cultural que divulga a obra de Pessoa e dinamiza actividades culturais desde 1987 na cidade.
15 de Outubro de 1890 é a data que Fernando Pessoa escolheu para o nascimento de Álvaro de Campos e não passa despercebida em Tavira, pois para celebrar o aniversário do heterónimo a Associação Cultural Partilha Alternativa coordena a festa, desde 2015, durante vários dias, com poesia e música.
“Álvaro de Campos é assim um poeta de Tavira, cidade onde passou a sua infância, cidade reflectida nos seus poemas.” (in Lopes, Teresa Rita, Álvaro de Campos o Engenheiro de Tavira, Tavira, 2006).
Alguns estudiosos defendem a ideia de que Fernando Pessoa abdicou de existir em benefício dos seus heterónimos, outros defendem que se dedicou de tal modo à escrita que não lhe sobrou tempo nem energia para existir na vida de todos os dias. Ou então terá vivido muito mais do que a grande maioria dos seres humanos através dos seus heterónimos e da sua obra literária!
Esta Biblioteca, com o seu dinamismo, dá destaque a todas as datas ligadas a Fernando Pessoa e aos seus heterónimos, promovendo actividades muito diversas e para públicos de todas as idades:
“A Hora do Conto”, “Ler, Ouvir e Contar”, “Letras ao Sol” (actividades de Verão), “Semana da Leitura” em conjunto com o Grupo de Trabalho das Bibliotecas de Tavira (GTBT). A “Maré de Contos” é uma iniciativa anual que reúne alguns dos melhores contadores e envolve a comunidade valorizando a oralidade e o património cultural imaterial. Já teve 16 edições com a mais-valia de ter sessões em vários locais do concelho e é uma parceria com a Associação Rock da Baixamar.
Para além de apresentação de livros e revistas, uma das iniciativas mais concorridas é “Encontros com Autores” que permite conversas entre os autores e os seus leitores e na qual tenho participado quer como leitora, quer como apresentadora de autores ou moderadora, é uma colaboração que faço pontualmente há cerca de 14 anos.
Recomendo a visita a esta Biblioteca e que se deixe prender pelos seus encantos:
A entrada com misto de estilos, as frases de Álvaro de Campos expostas de forma bem visível nas paredes e nas vidraças, o contraste de cores, os espaços ao ar livre, os cantos e recantos, os livros raros e os livros novos adquiridos a cada mês pelo Município.
Uma equipa dinâmica e acolhedora espera por si na Biblioteca, cuja programação pode ser consultada na Agenda Municipal de Tavira ou em bibliotecas.cm-tavira.pt
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
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