Multidões eufóricas esperavam-no em ambiente festivo: tocavam os sinos das igrejas, soavam trombetas e foguetes. Dançava-se nas ruas e abriam-se as janelas para o ver passar. Nesse ano de 1573, em todas as vilas e lugares por onde passou foi recebido em clima de apoteose. Foram 43 dias em contacto com o povo e o país real.
D. Sebastião alimentava o sonho da heroicidade e da expansão em África. Conquistar Marrocos era a sua ambição maior. E a rodeá-lo, um grupo de jovens confidentes que o empurravam para a aventura. E para o desastre.
E esta jornada que o trouxe ao Alentejo e ao Algarve era já o prenúncio de uma nova operação de mobilização de gentes e de vontades, depois da campanha em falso no ano anterior. Partira el rei da cidade de Évora, sexta -feira, pelas dez horas do segundo dia do mês de janeiro. Saiu pela porta do Rossio ao som das trombetas, atabales e charamelas. Entre moços fidalgos da sua Casa e confiança, D. Sebastião leva vestido – assim o descreve o cronista João Cascão – “gabão e roupeta e calças de racha cor de rosmaninho, e chapéu alto pardo”. Trajo pouco apropriado para o mau tempo – chuva, lama e vendaval -, que se fazia sentir e pelos ruins caminhos que havia de apanhar.
Ainda assim, o entusiasmo do povo crescia à medida que soava a notícia da sua chegada a cada lugar. E o que mais tocava aquela gente – avança o cronista – era a »simplicidade do rei falando com todos, embora esquivo no contacto com as mulheres e acomodando-se resignadamente a toda a espécie de alojamentos, mesmo os mais desconfortáveis«.
Em S. Pedro das Cabeças, por exemplo, onde se terá travado a batalha de Ourique que El-Rei fez questão de visitar, a comitiva foi recebida por um temporal que arrastou cavaleiros, carroças e animais pelas ribeiras, que saindo do leito, transformavam os campos num imenso mar de água e lodaçal. E em Almodôvar chovia tanto dentro das casas como na rua.
Passado o Alentejo, a 21 de janeiro já estava em Lagos que elevou à categoria de cidade. Nessa quarta-feira, ouviu missa na ermida de Nª Sra da Piedade e tomou depois a estrada para Sagres e Cabo de S. Vicente, onde visitou o convento e a vila do Infante. No percurso de regresso, foi sendo recebido e aplaudido por »muita gente de cavalo e a pé«. E num passeio de barco entre Portimão e Alvor, »do mar veio dar-lhe obediência uma muito grande baleia«, que suscitou o comentário de uma homem do mar que seguia no bergantim real: »até os peixes lhe vinham fazer festas«.
Percorreu o Algarve de lés a lés, demorando-se mais em Lagos, Loulé, Faro e Tavira. Mas não esqueceu Monchique, que desejou elevar à categoria de vila e concelho, não o tendo concretizado devido à forte oposição de Silves, onde esteve logo de seguida. A 28 de janeiro, já em Albufeira, deu entrada pela principal rua da aldeia que »de uma banda e de outra, estava cheia de gente e às janelas algumas moças bem parecidas«. Como de costume »houve dança de folias de homens e uma dança de meninas pelo que depois o rei foi até à igreja Matriz«.
À tarde foi de barco ver a costa e no desembarque tinha a recebê-lo Rui Barreto, que »de Quarteira lhe veio a Albufeira beijar a mão«. Ainda teve tempo para ir às lebres e na quinta feira, dia 29, partiu para Loulé, passando antes por Quarteira, quinta de Rui Barreto, onde no pátio das casas onde se recolheu lhe »correram umas vaquinhas e um touro«. Logo depois, pôs-se el-Rei a cavalo e »foi a uma caçada de porcos ou javalis e alguns veados«.
Acabada a montaria, o monarca foi recebido a caminho de Loulé pelo Juiz da vila com perto de 100 cavalos, que »fizeram salva de arcabuzaria«, passando a Loulé onde pernoitou no castelo. No dia anterior à partida para Faro, »fez mercê da alcaidaria-mor de Loulé a Gonçalo Nunes Barreto que era governador da vila«.
Na capital do reino, numa sexta-feira, dia 30 de janeiro, foi a comitiva recebida em festa às portas da cidade e junto à igreja de S. Pedro »fizeram-lhe um arco de madeira, a modo de porta, muito formoso, soberbo e bem concertado de panos de seda». Seguiram-se os pedidos feitos em nome da »rainha vossa avó” que era Senhora da cidade. Nas muitas cerimónias organizadas em sua honra, entregou-lhe o alcaide-mor as chaves da cidade e os »vereadores receberam-no com um pálio de damasco estrangeiro encarnada».
O rei ouviu missa no mosteiro de freiras »mui virtuosas e recolhidas no mosteiro de Nª Sra da Assunção »e depois de uma corrida de touros a pé e a cavalo, os quais viu numa das janelas dos seus aposentos, meteu-se num bergantim com o estribeiro mor e Rui Barreto e foi ver a Torre das Vigias, a barra e a ilha que está no próprio rio«.
No último dia do mês, depois de ouvir missa na Ermida de Sto António e de voltar ao convento das freiras, pelas dez horas, partiu em direção a Tavira. O primeiro sinal de festa, deste percurso, foi à igreja de Nª Senhora da Luz e chegado a Tavira foi recebido pelos vereadores, seguindo-se um desfile »por uma rua muito comprida (…) e às janelas muitas mulheres moças (…) e algumas deitavam à comitiva água de cheiro, e a rua estava tão cheia de gente, assim da terra como de castelhanos, que vieram ver a El-Rei de Aiamonte que não havia poder romper«.
Sempre com grande pormenor descritivo, o cronista acompanha o resto da jornada por Castro Marim, Aiamonte e Alcoutim. Daqui, subiu ao Alentejo tendo fechado o périplo real em Vila Viçosa, a 14 de fevereiro, ou seja, 43 dias depois.
De entre todos, D. Sebastião foi o rei que mais vezes visitou o Algarve. Por todo o lado havia festas e arraiais, corridas de touros, jogos de cartas e caçadas ao javali. Pelas ruas era o alvoroço e todos o queriam ver e tocar.
Anos mais tarde, a 26 de julho de 1578, Lagos voltou a ser o cais de partida, desta vez, para a aventura que deitaria tudo a perder. Uma armada formada por 800 navios e um exército de 15 a 23 mil homens – incluindo nobres, cavaleiros, soldados, mercenários e aventureiros -, zarpou em direção a Cádiz e depois a Marrocos. Nada correu bem: contratempos imprevistos, falta de planeamento estratégico, desconhecimento do terreno e impreparação dos soldados. Mais o calor, a fome, a sede e a desproporção de forças entre as hostes oponentes. Tudo junto, conduziram o exército português, esgotado e cansado, à tragédia e a um balanço fatal: 8 mil mortos e muitos milhares de prisioneiros. A jovem nobreza portuguesa e do Algarve que o acompanhou, ficou praticamente dizimada.
Perante a derrota que se tornara inevitável, o rei fizera ouvidos surdos às últimas tentativas de outros nobres para aceitar a rendição. Resolveu não acatar os conselhos e atirou simulando coragem: »Morrer sim, mas devagar!(1)«
Na poeira do deserto caiu o sonho e o rei com ele. O país logo a seguir.
“Foi-se a última nau, ao sol aziago(2)” – assim falou o poeta.
Referências e citações: (1) in »História de Portugal«, Oliveira Martins, 1879; (2) in »Mensagem«, F.Pessoa, Europa América, 2ª edição.
Nota: Com esta crónica, termina esta fase de colaboração quinzenalmente regular, do jornalista Ramiro Santos, durante os últimos dois anos. O Postal agradece a disponibilidade demonstrada por este nosso colaborador, que foi muito para além do compromisso desinteressadamente assumido. Havemos de voltar a ver-nos um dia destes.