A leitura não serve para nada. Felizmente.
Não cumpre um propósito concreto, como treinar para as olimpíadas, estudar ou trabalhar. É difícil ostentar os livros que se leu, como se faz com um carro desportivo ou com uma peça de roupa. Mesmo que os tenhamos, não os conseguimos verdadeiramente ter.
Num mundo em que a única razão para fazer algo é esse algo ser um meio para um fim, o livro é a maior das inutilidades. E há que louvar o inútil pois são poucos os que conseguem sobreviver assim, sem ceder à religiosidade do objectivo.
Ler não é apenas inútil, é também para imbecis. Numa sociedade telegráfica onde todo o conhecimento chega com um clique e em que cada vez estamos mais próximos de estar mais distantes uns dos outros, para quê dedicar horas da vida a olhar para uma folha cheia de caracteres. Quanto mais conhecimento disponível, menos o sabemos valorizar e aproveitar. Quando tudo tem um valor, nada tem valor.
Por isso (mas não só por isso) sou estúpido. Com tamanha facilidade e rapidez, apenas alguém estúpido abdicaria de tal em prol duma actividade tortuosa e sinistra como ler um livro.
Porque, ao contrário do que querem fazer acreditar, ler dá trabalho. Dói, mói e corrói. É um exercício duro e solitário. Não se consegue ler enquanto se faz o jantar, como se ouve música ou se vê televisão. A leitura é totalmente consumidora da nossa presença. Exige-nos integralmente. Para usar o termo em voga que mais não é do que uma apropriação descontextualizada de uma técnica budista, ler é mindfulness.
Ler é um compromisso que assumimos. Particularmente agora em que são infinitas as distracções e quase todas compostas de sons irritantes e luzes intermitentes. É um compromisso assim como fazer dieta. Neste caso, uma dieta mental em que abdicamos de fast food sensorial em prol de um alimento slow como o é um livro.
O sonho que tantos alimentam de casar as novas tecnologias com a literatura nasce da mesma ilusão em que tantos acreditaram, a de que o automatismo nas fábricas levaria a uma melhor qualidade de vida. O livro é o que sempre foi e é assim que deve ser. Como a calçada portuguesa precisa de um calceteiro, o livro precisa de um leitor. E de um autor. Por mais inteligência artificial que exista, o livro existirá sempre. Também o disco de vinil teve o seu óbito declarado muitas vezes e, no entanto, ele anda aí.
Quando os professores se queixam de que os alunos não lêem, eu pergunto se os professores o fazem. E quando os escritores se queixam de que não são lidos, eu pergunto se eles próprios lêem outros escritores. Tenho visto frequentemente que isso não acontece. Muitas vezes me lembro da vez em que uma livreira amiga me contou que os escritores de renome que frequentam a sua loja entram sem demonstrar o mínimo de curiosidade pelos livros expostos. Demorei a acreditar no mesmo até eu próprio ter uma banca de livros.
Não significa isto que, os leitores vorazes sejam de alguma forma mais inteligentes e quem não pega num livro, seja uma anémona. Conheço muitos casos em que é precisamente ao contrário.
Ler, só por si, não é sinónimo de uma melhor compreensão do mundo ou de capacidade de raciocínio. É por isso que existem livros e livros. Mas é mais fácil quem lê literatura de cordel passar a ler outro tipo de livros, do que quem não lê nada começar a ler.
Ler é uma actividade estúpida. Não torna os dentes mais brancos, não faz ganhar dinheiro, não cria six pack e geralmente forma pessoas com capacidade crítica. E todos sabemos os problemas que daí podem advir.
Não leia, pela sua saúde.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia