ASSIM SE VAI PERDENDO O ALGARVE
Existem vários modelos de enriquecimento substancial. Os que actuam fora dos limites da lei, regra geral assentes em tráficos sortidos que vão das substâncias alucinogénias ao comércio de seres humanos, assegurados por associações criminosas e violentas, que rapidamente se instalam. E existem actividades económicas lícitas, que vão da agricultura e pecuária, passam pelo comércio e serviços, e espalham-se por indústrias diversas. Destas, uma das mais recompensadoras é a da transformação de terrenos rústicos de baixo valor em áreas urbanas com índices de construção elevados, para habitação, alojamento turístico ou zona comercial.
O interior precisa de uma abertura que facilite a criação de empreendimentos que criem emprego e desenvolvimento económico, assim fixando novas gerações
Não admira que seja aí que se concentram as pressões de interesses poderosos sobre as autarquias e a administração pública, para se obterem autorizações e licenciamentos onde ontem eram vedadas. Facilmente se entra no império da especulação e da ganância, saltando por cima de valores paisagísticos, culturais, de sustentabilidade, e de equilíbrio entre a qualidade de vida das populações residentes e as necessidades de desenvolvimento e crescimento económico. O alvo da cobiça vira-se para as zonas litorais, quanto mais próximas do mar tanto mais rentáveis. É assim por quase todo o mundo, e o Algarve não escapou a essa onda avassaladora que desde que se tornou destino turístico na década de sessenta, não parou de se espalhar, betonizando impiedosamente essa frente, com uma ocupação massiva que está perto do ponto de ruptura. O que deveriam ser oásis de qualidade urbanística, como visionaram André Jordan ou Cupertino de Miranda há mais de cinquenta anos, deram lugar a uma corrida desenfreada de ocupação da faixa de dois quilómetros do mar a terra adentro, para lá dos limites do absurdo e do bom senso. O que deveria ter merecido ordenamento e planeamento urbanístico está hoje transformado num caos jurídico onde cada qual fura e interpreta a lei por onde pode. O(s) governo(s) e as autarquias falharam.
Actualmente, não há instrumentos de ordenamento do território revistos e actualizados como manda a Lei de Bases. Nem PROT, nem POOC’s, nem na Ria Formosa, nem na Costa Vicentina, nem Planos Directores Municipais. O que existe neste momento é um conjunto gigantesco de direitos adquiridos, de alvarás antigos ressuscitados por acção de juristas habilidosos, de projectos em curso, mas sobretudo de expectativas decorrentes de antigos planos territoriais em vias de constituição de compromissos através de PIP’s (pedidos de informação prévia), que as autarquias vão aprovando, cada qual puxando a brasa à sua sardinha, sem uma ideia coerente de desenvolvimento à escala da Região. Não há números oficiais sobre o que representa esta vaga de construção que aí vem. Mas essa tarefa de inventariação é imperativa e urgente, e deveria competir à CCDRA. Ninguém faz contas aos impactos que isso representa? Sobre os consumos de água? Sobre infraestruturas de saneamento falidas e carentes de renovação? Sobre estradas, ruas e avenidas, muitas delas já hoje saturadas de trânsito, e que não esticam nem alargam?
As principais cidades do Algarve têm horas de ponta crescentes, que há meia dúzia de anos não se verificavam. Existe uma gritante falta de estacionamentos, como se toda a gente passasse a andar de bicicleta. E continuam a massificar-se os centros urbanos, com densidades que beneficiam quem constrói, mas não contribuem para a qualidade de vida de quem lá vive? É perversa a lógica do financiamento autárquico, o IMI e o IMT representam 50% das receitas. Quantos mais metros quadrados de edificado se aprovar, maior é o encaixe. Numa avaliação casuística, há quem arrisque que o que está aí à porta representa entre 80.000 a 100.000 novos fogos e unidades de alojamento turístico, só na faixa litoral dos 2 quilómetros. São centenas de milhar de novos residentes ou passantes.
O Algarve suporta isto? É este o Algarve que se quer? Enquanto houver um metro quadrado de terra por ocupar, a lotta continua? Para os autóctones, e trabalhadores migrantes cuja maioria tem rendimentos limitados, essa não é a via para o acesso a uma habitação condigna. São necessárias bolsas de terrenos para construção a custos controlados e rendas acessíveis. A carestia de vida, na alimentação, na habitação e nos serviços, afecta sobremaneira uma parte substancial da população residente, cada vez mais afastada das suas praias, num processo de privatização encapotada que vai seguindo o seu curso, perante a passividade dos responsáveis políticos. Um assalto ao Domínio Público Marítimo.
O interior precisa de uma abertura que facilite a criação de empreendimentos que criem emprego e desenvolvimento económico, assim fixando novas gerações. Mas continua a ser o patinho feio dos interesses que mandam. Em contrapartida, assiste-se a uma explosão descontrolada da construção clandestina, uma proliferação de casas pré-fabricadas e de contentores, sem respeito nenhum por áreas ecológicas ou agrícolas, plantam-se onde calha, e veda-se de chapa à volta. Quem quer seguir a lei, esbarra numa burrocracia impenitente.
Dizem os cientistas, que a água do mar está a subir, mas os erros do passado repetem-se. A grafitagem emporcalha as fachadas das casas, dos sinais de trânsito, dos monumentos. Recuámos à fase terceiro-mundista. Existe uma descaracterização cultural e arquitectónica do Algarve, em ritmo acelerado. A insegurança instalou-se. Querem mais? Adeus Algarve.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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