Recentemente Portugal foi alvo ciberataques a empresas de telecomunicações e laboratórios clínicos. A disfunção nestas empresas teve repercussões a larga escala nos seus clientes quer empresariais, quer particulares. Estes incidentes fazem-nos reflectir sobre a nossa relação com o mundo digital. Parece óbvio que criámos uma sociedade dependente de computadores, porém, qual é o grau dessa dependência? Será que sempre e em todos os casos nada podemos fazer?
Há alguns anos atrás, acompanhei a minha sobrinha à escola para onde tinha vindo transferida. O funcionário da secretaria estava em plena batalha com o seu computador, de vez em quando olhava para mim e exclamava: “falha do sistema!” O problema arrastou-se durante bastante tempo e eu acabei por dizer que me tinha de ir embora, e puxei da carteira para pagar o almoço da nova estudante. “Isso não é possível! Tem de carregar o cartão e comprar a senha de almoço”. Então, faça o favor de lhe entregar o cartão para que se carregue e ela proceda como indicou, retorqui. “Isso não é possível! Não lhe posso emitir um cartão sem ter número de aluno. Não lhe consigo atribuir número de aluno porque há falha do sistema!” A partir daqui a conversa escalou. Finalmente, exigi que me levassem à funcionária chefe de cozinha, apresentei-lhe a minha sobrinha, e não arredei pé daquela escola até ouvir um “vá-se embora descansada que eu lhe garanto que a menina não fica sem comer”.
Outro dia, em pré-pandemia, dirigi-me ao centro de saúde para fazer um curativo. Tirei a minha senha de tratamento e fui aguardar para a sala de espera. Havia uma grande tensão no ambiente. Reparei que o ecrã onde transmitem vídeos e aparecem os números das senhas estava desligado. A funcionária esclareceu-me: “falha do sistema!” Muito bem, respondi eu, então em que número vamos? A senhora olhou para mim com um ar incrédulo e repetiu num misto de irritação e condescendência: “falha do sistema!”. A conversa que se seguiu e que aqui reproduzo talvez pudesse fazer parte de um livro de contos kafkiano:
– As pessoas que aqui estão à espera tiraram senha de tratamento?
– Sim.
– As enfermeiras que fazem os tratamentos já chegaram?
– Sim.
– Então porque não chamam as pessoas?
– Há falha no sistema.
– Está a dizer-me que as enfermeiras estão ali dentro à espera dos pacientes e ninguém entra porque o ecrã não está a chamar os números?
– Há falha no sistema!
Acto seguido, abri a porta que dá para os gabinetes e chamei pelas enfermeiras. Sugeri-lhes que viessem chamar as pessoas pelos seus números para que fossemos atendidos por ordem, como compete. Ainda tentaram parar este acto de rebelião contra “o sistema” mas perceberam que não teriam de enfrentar apenas a mim mas toda uma sala de espera exaltada.
Sou só eu que fico aturdida perante estas reacções à “falha do sistema”, ou o estimado leitor também?
No artigo do mês passado intitulado “Mascarada?” apresentámos teses que negam o livre arbítrio e defendem que o ser humano é predeterminado. Exactamente como os computadores da escola da minha sobrinha e do meu centro de saúde que estão predeterminados ― programados ― obedecendo sem hesitar, excepto quando falham, ou se lhes acaba a bateria.
Por certo que os computadores, tal como nós, também apanham vírus. Se calhar, é por isso mesmo que acontecem as tais “falhas do sistema”. A verdade é que tanto na escola como no centro de saúde, embora nos prejudicasse muitíssimo a todos, não me ocorreu chamar a polícia e mandar prender o computador por não cumprir as suas obrigações. Um dia destes, quem sabe, deparamo-nos com uma “pandemia informática”. Que faremos então? Podemos dar largas à nossa raiva e atirar o computador pela janela, podemos desligá-lo, podemos parti-lo à pedrada mas… Por alguma razão, ainda ninguém se lembrou de criar um reformatório para computadores e não existe nenhuma lei que os puna.
Se acreditarmos que somos predeterminados como os computadores, que consequências daí decorrem? Para começar, a responsabilidade ética desapareceria, e deixaríamos de ter qualquer incentivo para nos tentarmos melhorar. Passaríamos pela vida com um encolher de ombros, um “não posso fazer nada por mim próprio” ao género da música daquela primeira telenovela brasileira que um dia chegou ao nosso país: “eu nasci assim, eu cresci assim, e sou mesmo assim, vou ser sempre assim: Gabrié-é-la”.
Pergunto-me se os investigadores que negam o livre arbítrio se atrevem a educar os seus filhos. Para quê repreender-castigar ou elogiar-premiar se a criança, sendo predeterminada, não poderia ter actuado de outra maneira?
Em todas as civilizações conhecidas, os pais tentam educar os filhos, e as sociedades têm sistemas de recompensa e punição. Portanto, existe um acordo tácito em como o livre arbítrio e a responsabilidade ética existem. As excepções acontecem nos casos em que existe uma anomalia cerebral, demência, ou uma doença do foro psiquiátrico. De nada serve punir um demente ou um esquizofrénico até à exaustão, jamais ficará são.
No seu livro Ética a Nicómaco o filósofo grego Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) utiliza o seguinte critério para determinar se o ónus ético é ou não imputável: uma pessoa é responsável pelo que fez, apenas se pudesse ter agido de outro modo. Nessa circunstância, “tanto a virtude como o vício estão em nosso poder. Está em nosso poder o fazer, e está também o não fazer; sempre que está em nosso poder o não, está também o sim.” (Ética a Nicómaco 113b)
Suponhamos que uma pessoa descuidada conduz em excesso de velocidade porque não se apercebeu da placa que indicava o limite. Deverá ou não ser punida por essa transgressão? Aristóteles diz que a lei pune correctamente tais casos de delito ignorante, porque a pessoa é responsável pela sua ignorância negligente, da mesma forma que um bêbado deve ser responsabilizados pelos estragos que causa, mesmo que inadvertidamente, quando debaixo do domínio do álcool.
A questão da liberdade torna-se mais complexa quando entramos no foro psicológico. Também no artigo do mês passado apresentámos a akrasia ou “fraqueza de vontade” de Santo Agostinho que rezava assim: “dai-me a castidade e a continência; mas não ma deis já.” (Confissões, 8:7) Este é um caso típico em aquilo que uma pessoas considera que é bom e os seus desejos entram em conflito. A pessoa que sofre de akrasia acaba por sucumbir aos desejos e fazer o que acredita ser mau. Pelo contrário, quando as crenças e desejos de uma pessoa estão em harmonia – como no caso de uma pessoa completamente virtuosa – as suas acções seguirão as suas crenças e desejos pelo que parece ser bom.
Esta harmonia não está dada, cultiva-se. A virtude é um estado de carácter desenvolvido através da prática: torno-me corajoso agindo corajosamente, assim como me torno um bom leitor lendo muito.
Que acontece com o vício? De maneira análoga, o vício desenvolve-se através da repetição: é adquirindo o hábito de enganar que uma pessoa se torna mentirosa, é bebendo demasiado que alguém se torna alcoólico, enfim, “são as condutas particulares que tornam os homens de tal ou qual índole” (Ética a Nicómaco 114a).
Temos aqui um bom exemplo de filosofia ocidental e oriental em perfeita sintonia: o conceito budista de Karma pode ser entendido como uma energia de hábito. Praticando a virtude com regularidade e disciplina tornamo-nos virtuosos, praticando o vício com frequência e insistência tornamo-nos viciosos. Os hábitos são muito difíceis de mudar, portanto, é de bom senso adquirir bons hábitos desde cedo.
Justamente, Aristóteles admite que algumas pessoas são incorrigivelmente más, porque fixaram firmemente maus caracteres por persistirem em maus hábitos durante demasiado tempo. O filósofo dá-nos o exemplo de uma pessoa incuravelmente doente, que enfermou devido à vida dissoluta e ao desprezo pelas indicações do seu médico. Aristóteles não aceita desculpas vitimizadoras. Tornamo-nos na pessoa que somos agora, devido às nossas acções passadas, onde tivemos liberdade para decidir actuar desde ou daquele modo. No exemplo citado, a pessoa doente é responsável pela sua doença, embora não haja nada que possa fazer a esse respeito agora, por ser demasiado tarde para mudar. (Ética a Nícómaco, 1114ab).
O que distingue os humanos adultos das crianças pequenas, dos animais e, por certo, das máquinas, é a nossa posse de razão prática. Esta capacidade permite-nos deliberar sobre o que fazer para melhor alcançar o que acreditamos ser bom. As nossas escolhas baseiam-se nessa deliberação. Somente criaturas que podem fazer esse tipo de escolha deliberativa são capazes de virtude ou vício, e apenas essas criaturas são responsáveis pelo que fazem.
Por tudo o que aqui foi dito, creio que ser legitimo deduzir que nós somos radicalmente diferentes dos computadores. Pese embora o facto de o ambiente e a educação influenciarem o carácter, a pessoa não é um ser predeterminado. Então, se o nosso livre arbítrio existe, se podemos escolher, se podemos raciocinar, deliberar e agir, por que motivo baixamos os braços numa inacção submissa à máquina quando “há uma falha no sistema”?!
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* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico