“Um meio para explicar os comportamentos religiosos do passado é o conceito sociológico de função social… a religião como cultura constitui um continuum, não existem rupturas na cultura nem nas religiões, mas sobreposições simbólicas e cúlticas.”
Moisés Espírito Santo, in “As origens do cristianismo português”.
Quem analisa os movimentos sociais na perspectiva da história e sociologia da cultura, procura nas estruturas sociais concepções ideológicas, mentalidades de elites religiosas, aristocráticas, costumes, expressões e oralidades populares.
Mil anos atravessados por migrações, colonizações, ocupações, conflitos, doutrinações, fizeram surgir na Ibéria o complexo cultural heterogéneo que permanece.
Pela origem franca a primeira dinastia portuguesa é designada por “Borgonhesa”, introduziram nos palácios a poesia provençal e as cantigas
Portugal surge como entidade política independente sete séculos após o início do que os historiadores designam por Idade Media (séc. V-XV). Segundo a demografia histórica no século XIII a norte do Tejo viveriam 700.000 habitantes, sete vezes mais que a sul (A.H. Oliveira Marques). Crescimento populacional entre Douro e Minho com a vinda de aristocratas, militares e religiosos francos, fixação devido à ofensiva almorávida, divisória mutável entre o Mondego e o Tejo, por vezes abaixo.
Do ponto de vista da geografia humana, territórios rurais mais emparcelados a norte cristianizados por franco-germânicos convertidos, comunitarismo a sul e grande propriedade, com influência da agricultura romana e do urbanismo muçulmano.
O Condado Portucalense, berço da monarquia portuguesa, resulta da repartição do poder entre grupos ligados à nobreza senhorial francesa sediada nas Astúrias e Leão, entrada de ordens religiosas militares, do movimento beneditino de clausura, a Ordem de São Bento, fundada em 529 d.C. De regra “ora e labora/ reza e trabalha” e concepção cristocentrica, colocava Jesus Cristo no centro do culto. Esta influente ordem teve ao longo da existência 15 Papas, em Portugal 22 mosteiros.
A constituição de grandes domínios territoriais, instalação de conventos sob tutela da alta nobreza, tal como em Itália e França, desencadeou divergências de prática religiosa, supremacia da visão elitista, sumptuosa e erudita dos cluniacenses franceses versus o cristianismo popular moçárabe herdeiro da cultura hispano-romana. Os rituais moçárabes foram proibidos em 1080 por Gregório VII em Toledo.
A ordem de Cluny, sediada numa abadia da Borgonha, ramificação do movimento beneditino, os seus monges tiveram influência cultural na Península a partir do século XI com instalação de vários mosteiros a norte e no caminho de Santiago.
O Conde D. Henrique, um francês pai do primeiro rei português, convidou os de Cluny, a instalarem-se em Portugal, “monges negros” pela cor do hábito, evangelizadores e colonizadores. Os cistercienses, beneditinos rigoristas com sede na Abadia de Cister também na Borgonha, eram “monges brancos”, vêm para Portugal no séc. XII, sendo o mosteiro de Alcobaça, obra gótica, classificado Património Mundial da UNESCO (1989), é o mais famoso da ordem monástica que se dedicava à vinha, trabalhos artísticos, farmacêutica e actividade assistencial.
A investigação sobre o heterogéneo cristianismo peninsular vai avançando com o estudo dos temas dos primeiros concílios, da presença de cultos mediterrânicos orientais e religiões mistéricas, de continuidades do paganismo da Deusa Mãe substituídas por formas marianas, debates teológicos entre Roma e Bizâncio.
Pela origem franca a primeira dinastia portuguesa é designada por “Borgonhesa”, introduziram nos palácios a poesia provençal e as cantigas, o cantochão gregoriano, os scriptorium de manuscritos e livros, igrejas de modelo arquitectónico românico como Dume, perto de Braga, o gótico cisterciense, também a arquitectura das fortificações das ordens militares.
A cultura muçulmano-berbere, que já existiria na Península, modelou urbanismos comunitários definidos por medinas e ruelas, permanece com o mudejarismo executado por artífices nas mourarias, produção de tijoleiras e ladrilhos, azulejaria geometrizada, culturas da água com pateos, pomares, poesia e vocabulários integrando milhares de palavras de origem árabe que são hoje português.
Estilos de vida contrastantes mantiveram-se, cultura senhorial e cosmopolita das classes da nobreza e clero com influência do norte-centro europeu e a cultura popular mediterrânica de resistência, continuidade do estilo de vida e valores do “mare nostrum” enraizados desde a Antiguidade nas populações.
O fenómeno mantém-se na cultura portuguesa, evoluindo para novas formas.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
Leia também: “A primeira tarde portuguesa”