Pedro Salgado é considerado o pai da ilustração científica em Portugal. Biólogo, professor universitário, ilustrador científico premiado internacionalmente várias vezes, é o fundador do Grupo do Risco.
P – Pedro, arriscaste vir à Ilha Deserta pela primeira vez?
R – É verdade. Já tinha passado ao largo, mas nunca tinha atracado aqui.
P – E constou-me que fizeste snorkel, que tal a experiência?
R – Vi mais do que estava à espera. Fui junto ao pontão… Quando há areia, rochas, buraquinhos e lajes é expectável que aconteçam lá coisas dentro. E, de facto, vi muitos peixes, até vi um sargo-veado.
P – Um sargo-veado?
R – Não sei porque é que se chama assim. Mas é um sargo muito diferente de todos os outros sargos porque tem três bandas castanhas muito marcadas. É muito bonito! Os outros sargos são todos muito parecidos uns com os outros, prateados, uns têm mais riscas, outros menos. Este sargo-veado distingue-se. É um sargo solitário. Quando são pequeninos andam juntos dois ou três, mas na fase adulta andam sempre sozinhos. Aqui entre nós, eu também faço caça-submarina, mas deixei de caçar os sargos-veado.
P – Porquê?
R – Custa-me, porque são muito bonitos.
P – Então a beleza, que há quem diga que não serve para nada, parece conferir uma espécie de aura protectora? Aliás, a beleza e o conhecimento científico estão entretecidos na tua vida profissional. Queres falar um bocadinho sobre isso?
R – A minha atracção pela biologia acontece sobretudo numa vertente estética. Claro que eu gosto de entender como é que as coisas funcionam, mas aquilo que sempre me chamou a atenção foi perceber diferenças, por vezes subtis, entre uma coisa e outra. Dando-me conta de que não são a mesma coisa, tentar encontrar aquilo que difere e o que é parecido. Se calhar o termo é um bocado disparatado, mas eu considero-me um voyeur, um voyeur da natureza. Sou capaz de estar duas horas a olhar para um caranguejo-eremita dentro de um búzio. Fico divertido a ver o que é que acontece, a ver o que é que ele faz.
P – És capaz de me dizer o que é que acontece nesse estado de atenção demorada?
R – Acontece o mesmo que no desenho: não há tempo.
P – Podemos então dizer que há uma dilatação do tempo, tanto quando estás a desenhar como quando estás a contemplar?
R – É exactamente a mesma coisa: observar com muita, muita atenção, contemplar de uma forma totalmente dada, é a mesma coisa que desenhar. É o mesmo estado de alma. É um foco total, um fechar com tudo o que existe à volta. Não é que seja desagradável o que está à volta, mas é como se se apagasse tudo à volta e só houvesse luz ali. O tempo desaparece! Aliás, é sabido, e vem em todos os compêndios de desenho e também em estudos menos ligados ao desenho em si, mas ao que desenhar significa, que o estado mental próprio do desenho não se pontua no tempo. E eu vejo isso com os meus alunos: estiveram a desenhar durante uma hora e pensam que só passou um quarto de hora. Quando se entra no modo de desenho, há uma série de funções na nossa cabeça que são desligadas. Uma delas é a noção de tempo, o tempo deixa de existir. E isso para mim é também um estado de graça!
P – A filósofa espanhola María Zambrano refere-se a esse estado como presente perfeito. Descreve-o em detalhe quando escreve sobre a criação artística. Tem imensa afinidade com o que estás a dizer.
R – É uma ligação directa, que é primeiramente visual. Mas eu rapidamente tenho também vontade de tocar, de sentir a textura das coisas.
P – E esse estado de concentração prolongada, que acaba por desaguar num estado de graça, depende do talento para o desenho, do resultado artístico, ou é independente?
R – É totalmente independente.
P – Quer dizer que quer se desenhe “mal” ou “bem”, se pode atingir os mesmos benefícios, porque estes decorrem da natureza da atenção e não da qualidade da obra artística produzida.
R – Sim. É nisso que acredito. A minha área é a biologia marinha, e eu gosto muito de desenhar peixinhos e tudo o mais…
P – Tens em ti a conjugação do interesse científico com a apreciação estética.
R – Exactamente. Acho que não é nada difícil uma pessoa ficar encantada por algumas coisas que nos são mostradas por quem as entende. Fazemos descobertas! Eu tenho esse exemplo muito presente porque eu nunca liguei nenhuma à botânica, só pensava em peixes, mas, olha, casei com uma botânica, que me mostrou a parte interessante das plantas, e não é menos interessante que o mar. Só que a minha ligação ao mar é desde que nasci. Só depois desta ligação mais recente à botânica é que descobri a minha predilecção pelas árvores, porque me criam uns desafios muito particulares no desenho. Sobretudo, as árvores velhas e com feridas, com cicatrizes porque são as mais interessantes, as mais bonitas, as mais vividas. As que têm mais sumo para serem capturadas num desenho.
P – Pela abundância de formas?
R – Sim, e também pelas histórias que contam: buracos de um pica-pau, um rasgão num tronco, torções que só conseguimos ver porque já passou muito tempo… Foi o vento a empurrar, um tronco a partir… Uma árvore vivida! Em termos de desenho fazer um cilindro não tem graça nenhuma! Portanto, fico uma eternidade a olhar para uma árvore antiga.
P – Não é curioso que se pense assim das árvores, mas quando se trata de pessoas façamos tudo para não termos rugas nem cicatrizes. Desde os cremes, às injecções de botox e à cirurgia estética tudo fazemos para dissipar a passagem do tempo na nossa pele. Não te parece um contra-senso?
R – Isso é nadar contra a corrente. É um disparate! O melhor é aceitar que a forma foi mudando. Devemos tratar bem a pele e alimentá-la, mas o melhor é envelhecer com rugas de riso em vez de rugas de zanga.
P – Eu também gosto de ver a coreografia do tempo no rosto das pessoas.
R – Patinhas de galo são sempre deliciosas! (risos)
P – Voltando ao que estavas a dizer, alcanças um outro estado perceptivo através da concentração da atenção?
R – Sim, para mim há três níveis de percepção visual: o primeiro é aquele que toda a gente conhece, e que a maior parte é o único que usa, que é ver. Ver para identificar, para saber o que é. E a partir do momento em que já sabe o que é, desliga. Deixou de ter interesse. Depois há aqueles que observam…
P – Esse seria o segundo nível?
R – Sim. E quem observa tem uma recompensa porque descobre coisas de que não estava à espera. Há uma recompensa pelo esforço de ter parado: “epá, deixa lá ver o que é que se passa aqui”.
P – E o terceiro nível?
R – O terceiro nível é o desenho, ainda vai mais longe. Sentes que há ali uma ligação quase física. Há ali uma energia… É um observar, mas um observar de imersão.
P – É uma ligação do olho com a mão?
R – O desenho é cabeça. Jeitinho para o desenho, isso não interessa nada! Não ser capaz de fazer uma linha direita, também não. O que interessa no desenho é a maneira de ver. Por isso é que o ver, o observar, o contemplar, o ficar quase transtornado… Coisas que parecem completamente aleatórias… De repente encontras um padrão: isto liga aqui, isto tem uma simetria desta maneira…
P – É a atenção ao particular, ao pormenor.
R – Quando tens de desenhar um tronquinho, uma ramificação, se não estás atento a esses pormenores, as árvores desenhadas por várias pessoas acabam por ser todas muito parecidas. Porquê? Porque o que se desenha é um símbolo de árvore, não é a árvore que estão a ver. As pessoas olham, identificam, ficam satisfeitas e a partir daí o que vão desenhar não é o que estão a ver, é o que sabem. Desenhar o que se sabe é desenhar por símbolos, não tem nada a ver com o que está ali.
P – Entendo, acabas por reproduzir o conceito que tens na cabeça e não a árvore, singular e única que está à tua frente. Deixas de prestar atenção. Isto prende-se com o que disseste atrás, consideras que há uma relação entre o tempo de atenção dedicada e o encantamento?
R – O desenho de observação - não o desenho de imaginação, que é outra coisa - obriga-te sempre a olhar com muita atenção para conseguir reproduzir num papel - que é uma mentira, porque se trata de um plano, de duas dimensões, e estamos a desenhar algo que tem três dimensões - e esse esforço é que te faz ver que, afinal, isto que está aqui, é um terço do tamanho daquilo, que cabe ali, que o padrão acontece assim… Quando tu estás a fazer cálculos de distâncias, de ângulos, de padrões, de coisas por cima e por trás - desenhar é isto! - esse esforço, necessariamente, leva-te a descobrir coisas que tu nunca verias. E quando descobres coisas que nunca verias tens uma satisfação enorme porque aquilo é mais do que parecia inicialmente…
P – Portanto, ficas encantado!
R – Eu falo em afectos: eu desenho uma árvore e criei uma ligação com essa árvore. Todos os desenhos têm lá plasmados afectos, há um afecto necessário para que o desenho tenha sido feito daquela maneira. Todo aquele tempo de atenção, de observação, é tempo que é dedicado, é uma homenagem, é uma ligação entre a pessoa e o objecto que se está a tentar registar. Lá no grupo às vezes ouve-se assim: essa árvore é minha, já a desenhei (gargalhadas).
P – Conta-nos lá, que grupo é esse?
R – No Grupo do Risco uns desenham, outros fazem fotografia. O que nos une é irmos à procura de motivos naturais que nos encantam. Não somos propriamente activistas ambientais. Vamos por outro caminho… Essas imagens que são criadas por quem quer prestar muita atenção, prestar homenagem, criar ligações com coisas a que estamos naturalmente ligados - porque nós somos biológicos também - o próprio desenho transporta essas emoções e esses afectos para terceiros. Várias pessoas que vieram às nossas exposições ou viram os nossos livros, portanto, viram desenhos e fotografias, foram tocadas por esse afecto e depois quiseram visitar esses lugares que viram representados.
P – Inspiraram-se nos Riscadores de História Natural do séc. XVIII que acompanhavam os exploradores nas chamadas Viagens Filosóficas. Num mundo cada vez mais tomado pelo digital, vocês voltam a viajar em busca do contacto directo com a natureza.
R – Sim, e a arte é uma maneira de despontar esse encantamento pela natureza.
P – O vosso modus operandi é viajarem todos juntos para um determinado destino e ficarem lá…
R – A ideia é cortar. Somos um grupo heterogéneo, cerca de trinta na actualidade. Mas, simplificando, somos um grupo de artistas e cientistas e, ao convivermos, os artistas ficam um bocadinho mais cientistas e os cientistas ficam um bocadinho mais artistas. Isto visto de um ponto de vista endógeno. Nunca pensámos em nós como militantes do ambiente, mas somos muitíssimo focados nessa questão.
P – Têm vários livros publicados, sobre vários espaços, algum algarvio?
R – Sim, em 1999, fizemos uma exposição sobre a Ria Formosa.
P – O livro / catálogo está publicado?
R – Nós temos 14 expedições e 7 livros. Quer isto dizer que metade do nosso material ainda está por publicar. A Ria Formosa ainda está em pastas à espera de apoio…
Fica aqui o apelo, para que a vossa obra chegue a muitos mais de nós, e assim nos contagie com o vosso encantamento pela natureza.
Café Filosófico: Presente Perfeito
17.09.2024 18.30-20.00 em Português | 18.09.2024 6.30-8.00 pm in English
Inscrições: [email protected]
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
Leia também: A Memória e o Desapego | Por Maria João Neves