Violeta é o novo romance de Isabel Allende, a assinalar a comemoração dos 40 anos de vida literária desta autora que tem sido presença constante e essencial na vida de milhões de leitores. O lançamento mundial do novo livro, com edição simultânea em vários países, e uma apresentação online com a autora exclusiva para os leitores portugueses, deu-se no passado dia 25 de janeiro, data simbólica escolhida por Isabel Allende. A tradução é de Carla Ribeiro. A obra da autora chilena encontra-se integralmente publicada pela Porto Editora.
Violeta é um romance de celebração. De 80 anos de vida, de 4 décadas de percurso literário, iniciado com o fulgurante sucesso de A Casa dos Espíritos. Talvez por isso mesmo as datas e os anos são tão importantes em Violeta. O romance inicia-se com o nascimento da personagem epónima, num dia de tempestade, em 1920, e termina justamente em 2020, com a morte da protagonista e narradora. Ou seja, nesta narrativa cabem 100 anos de vida de uma personagem imensa, que aterrou «de cabeça na vida» (p. 15) – durante o parto a criança escorrega das mãos da tia que assiste ao parto e bate com a cabeça no chão, ficando marcada por um galo. A vida de Violeta, como se verá, atravessa e cruza justamente diversos momentos-chave de mais de um século. Violeta nasce no ano da peste, quando ainda se sentem os efeitos devastadores da Grande Guerra, do outro lado do Atlântico, e a gripe espanhola, a influenza, chega ao seu país natal, na América do Sul, obrigando a uma série de cuidados, como a desinfeção constante, o uso de máscaras e recolhimento social. A sua vida terminará, curiosamente, um século depois, durante o deflagrar de uma nova pandemia.
Logo desde as primeiras linhas, o leitor reconhece o estilo muito próprio da escritora chilena, entre os saltos cronológicos em que a história avança e recua no tempo, conforme acompanha um mosaico de personagens, cuja natureza é, quase sempre, tão forte quanto excêntrica, e o seu humor muito peculiar, como acontece nesta passagem: «Nessa noite, fui ao seu quarto. Não fiques admirado, Camilo, nem sempre fui uma velha desvalida, aos 51 anos ainda era atraente e as minhas hormonas funcionavam.» (p. 219) Curiosamente, da mesma forma que o primeiro romance da autora, A Casa dos Espíritos, começou com a intenção de ser uma carta ao seu avô, que estava prestes a falecer, Violeta surge sob a forma de uma longa carta a um narratário, Camilo. Mas este novo romance tem ainda a particularidade de ter sido fruto da vontade da autora de contar a história de Doña Panchita, a sua mãe, falecida em 2018. Mas como tantas vezes acontece em Isabel Allende, em que até Afrodite, um livro de receitas, se transforma num romance, ou Paula, escrito como uma carta à filha que morreu, surge pejado de histórias íntimas e pessoais, também este suposto registo biográfico sucumbiu, felizmente, à influência da ficção. Note-se, aliás, que o apelido de Violeta, del Valle, ressoa de imediato a genealogia de Clara de A Casa dos Espíritos – se lermos outras obras da autora, como Retrato a Sépia, este é aliás um patronímico que volta a surgir, interligando subtilmente as várias obras da autora. A certa altura, na página 102, Violeta acaba por desvelar como Nívea, a mãe do seu pai, «tinha morrido decapitada num arrepiante acidente de automóvel, e que a sua cabeça se tinha perdido num cercado». Relembre-se os leitores mais familiarizados com a obra de Allende, que Nívea era justamente a mãe de Clara. A própria Clara aparece aliás indiretamente referida no romance, numa passagem logo a seguir: «havia uma tia capaz de falar com as almas». O pai de Violeta será, por conseguinte, irmão de Clara, e um dos 15 filhos de Nívea (conforme referido no romance de estreia de Allende).
Violeta não resulta, portanto, na história de vida da mãe de Isabel Allende, mas sim na história da mulher que Panchita teria sido, se tivesse podido ter a força de vontade, a independência e a capacidade de se sustentar sozinha, como Violeta, pois na vida de uma mulher, nascida no século passado, ou mesmo neste, há sempre várias prisões de que se libertar.
«A realidade é que cada um é responsável pela sua própria vida. Nascemos com certas cartas do baralho e é com elas que jogamos o nosso jogo; a alguns calham-lhes cartas más e perdem tudo, mas outros jogam magistralmente com essas mesmas cartas e triunfam. O naipe determina quem somos: idade, género, raça, família, nacionalidade, etc, e não o podemos mudar, apenas utilizá-lo o melhor possível. Nesse jogo, existem obstáculos e oportunidades, estratégias e armadilhas.» (p. 194)
Violeta atravessa um século de vida das mais diversas peripécias, inclusive diversas catástrofes naturais, entre terramotos e furacões, até se tornar já na terceira idade (Violeta viverá ainda uma “quarta” idade) numa patrona, cujo património lhe permitirá criar uma Fundação em prol de jovens mulheres – o que ressoa curiosamente o trabalho da Fundação da própria Isabel Allende.
O país em que Violeta nasce nunca chega a ser nomeado, tornando-se assim não propriamente o Chile enquanto pátria perdida ou “país inventado” de Isabel Allende, exilada desde 1973 do seu país-natal. Esse país é, assim, um lugar acrónico, fora do espaço, que representa a América do Sul, com a sua clivagem social, mestiçagem e turbulência política – os campos de concentração, os homicídios e desaparecimentos, a tortura, a repressão, países subdesenvolvidos que sob regimes tirânicos se transformam em países prósperos, ainda que sob a sombra da corrupção e da desigualdade. Violeta fala-nos inclusivamente da «infame Operação Condor», criada pelos Estados Unidos da América para instaurar ditaduras de direita no continente sul-americano (p. 265).
Nesta vivência cheia de sobressaltos, que cruza momentos tão díspares como a Grande Depressão, a luta pelos direitos da mulher, e a mais recente pandemia, e une lugares tão distantes, como a Noruega ou o Congo, Violeta é um romance ambicioso, mas coeso, que vai certamente corresponder às expetativas dos fãs de Allende.
Isabel Allende nasceu em 1942 no Peru (por mera casualidade). Viveu no Chile entre 1945 e 1975, esteve exilada na Venezuela até 1988 e vive, desde então, na Califórnia. Em 1982, A Casa dos Espíritos converteu-se numa obra de referência da literatura latino-americana (a par de Cem Anos de Solidão de Gabriel García Márquez). Seguiram-se dezenas de livros, todos eles êxitos internacionais. Entre outras distinções, foi galardoada com o Prémio Nacional de Literatura do Chile e agraciada, em 2014, com a Medalha Presidencial da Liberdade, por Barack Obama. Em setembro de 2020 recebeu o Prémio Liber, outorgado pela Federación de Gremios de Editores de España, que a classifica como a autora latino-americana mais destacada da atualidade, traduzida em trinta e cinco línguas.