“Badiu”. Palavra que a etimologia diz descender de “vadio”, nome pejorativo outrora dado a escravos africanos que, fugindo aos seus captores, se fixaram no interior da Ilha de Santiago, Cabo Verde. Com o tempo, essa conotação negativa foi-se perdendo, e a palavra passou a ser utilizada como símbolo de resistência e de orgulho. “Badiu”, ou “badio”, já não é o “vadio” da opressão, mas um “membro de um importante segmento da classe dos negros forros que recusavam obediência às instituições, como forma de sublinhar o seu protesto contra a escravatura”, escreve Onésimo Silveira.
Nesta transformação da palavra poderíamos traçar um paralelo com uma outra da língua inglesa, começada por n, e que o hip-hop abreviou transformando-a em sinónimo de amigo ou camarada. Dino D’Santiago, português, filho de cabo-verdianos, arrancou-lhe o racismo e fez dela bandeira, atribuindo-a como título ao seu novo disco. “Badiu” é com ele potência crioula, o sangue que ferve por aquele que os seus outrora derramaram. “Badiu” é o homem que consegue esgotar um Coliseu dos Recreios naquela que foi, até ver, uma das maiores celebrações da música africana feita em Portugal, a apoteose dessa ‘Nova Lisboa’ que ele canta em “Mundu Nôbu”, e que cantou também hoje.
As filas consideráveis que se registaram para entrar no Coliseu, a uma hora do início do concerto, foram disto prova. Esta não foi uma noite como as outras. Foi a grande noite de consagração de um artista que já tanto mostrou e ganhou, e que não está de modo algum pronto para fazer uma pausa no seu percurso. Não enquanto a voz negra continuar a precisar de gritar para se fazer ouvir num país que ainda recusa comentar o seu passado histórico.
Gritos de “Dino!”, uma cantiga prenhe de alma a vir do PA e eis o homem, iluminado por um holofote que pisca ténue. A melodia depressa dá lugar ao ritmo, naturalmente africano, desavergonhadamente moderno, eletrónica dançável de caracterização difícil – afrobeats parece um termo demasiado vago, até porque África é composta por inúmeros beats. Bate com a mão no peito indicando a presença, até saudar as 4 mil pessoas que tinha diante de si: “Boa noite, família”. Sem banda, sem um DJ em palco, apenas ele e a luz e um microfone. Decidiu estar sozinho, revela-nos, para nos contar a sua história olhos nos olhos. E ergue bem alto essa liberdade: a sua presença ali constitui “o sonho mais audaz dos [seus] ancestrais”.
‘Sofia’, canção com sabor a cachupa, permite ao público abanar a sua raba crioula (por nascença ou afinidade) como pode, no meio de uma massa compacta que em momento algum se deixou ficar indiferente. Agitam-se bandeiras de Cabo Verde, levanta-se a voz, o punho direito aponta ao céu, como se a música cabo-verdiana tivesse encontrado o seu Amílcar Cabral. Por entre canções, as vozes da família contam o percurso de vida do rapaz que nasceu Claudino Pereira e se tornou Dino D’Santiago. O homem que pode escolher o seu próprio nome é o mais livre de todos, e este que aqui vemos hoje traz consigo testemunhas. Slow J é a primeira, perante a euforia geral dos presentes e o grito de ‘Esquinas’: “nossos corpos também são pátria!”.
Ao longo de hora e meia de espetáculo, o tradicionalismo vai-se encontrando com a modernidade. A voz sempre em primeiro plano, naturalmente, porque em “Badiu” e em Dino D’Santiago importa muito mais a palavra. Mesmo que a batida, por vezes quase techno, afropresente e não afrofuturista (até porque o techno é música negra, mesmo que nos tendamos a esquecer disso), a queira esconder, sendo que os gestos também falam. ‘Pé Ratxado’ recorda-nos que este é o concerto de apresentação de um álbum novo, ‘Badia’ lembra que há mais lutas além da do homem negro – a da mulher negra, por exemplo. E uma farpa lançada a uma Europa onde a multiculturalidade é por vezes miragem: “mesmo em tempo de guerra, uns são seres humanos, outros são africanos”.
‘Kriolu’ faz explodir o Coliseu, também pela presença de Julinho KSD. Alícia, convidada ‘retirada’ ao público, ganha uma promessa: “No que depender de mim, todos os palcos vão ser teus”. O lembrete de que à mesma hora Maluma ocupava a Altice Arena é de imediato desdenhado: “2 de abril é dia de Dino D’Santiago”. A fechar, já no encore, Branko sobe ao palco – e Dino desce ao público – para mostrar que hoje só poderia dar ‘Tudo Certo’. E sai-se do Coliseu com a sensação de ter testemunhado, como o disse o primeiro, o artista português mais importante da atualidade. Não só português, como cabo-verdiano, africano, ou simplesmente humano. A liberdade de um é a liberdade de todos.
- Texto: Blitz do Expresso, jornal parceiro do POSTAL