Agora que Bébel partiu, inundam-se as redes sociais de fotos dele, na maioria delas vê-se o Michel Poiccard de “O Acossado” ou o Ferdinand de “Pedro, O Louco”. A persona Belmondo não seria o que foi sem aqueles filmes essenciais de Godard, disso não restam dúvidas, foi de resto Godard quem o convenceu no final dos anos 50 de que o cinema não era um “disparate”, impulsionando-o para uma carreira meteórica no cinema francês da segunda metade do século XX.
Belmondo filmou com Chabrol (“Pedido de Divórcio”, o primeiro em que encabeçou o elenco) antes de fazer uma curta e as três longas com Godard (entre as já citadas há “Uma Mulher É uma Mulher”) que inauguram a sua entrada no cinema moderno. Seria dirigido mais tarde por Truffaut (“A Sereia do Mississipi”) e por Resnais (“Stavisky”, já nos anos 70) cineastas associados à Nouvelle Vague, também por Louis Malle, que da “vaga” foi apenas um compagnon de route, mas a verdade é que, da sua filmografia de 80 títulos, só uma pequena dezena, talvez nem isso, se pode relacionar com a erupção que a Nouvelle Vague trouxe e este facto deve agora ser sublinhado.
Nascido em Neuilly-sur-Seine em família burguesa e filho de artistas que lhe dão vida confortável em Paris (o pai era escultor de renome, Paul Belmondo), o adolescente mimado tem a cabeça noutro lugar: é um apaixonado pelo desporto e pela boémia, chega a tentar carreira, ainda menor de idade, como boxeur e faz uma dúzia de combates, joga futebol como guarda-redes (ele está ligado, nos anos 70, à refundação do Paris Saint-Germain, clube onde hoje joga Messi). Mau aluno incorrigível, a passagem pelo Conservatório onde conhece Jean-Pierre Marielle, Bruno Cremer, Claude Rich ou Jean Rochefort resulta em fracasso, com o diploma mandado às urtigas; o seu charme natural não parece ser suficiente para mais do que um percurso modesto em papéis secundários. E as noites são de farra até às tantas porque a vida permite-lhe esse privilégio. Ainda assim Belmondo ganha algum nome no teatro, passa por uma série de filmes em pequenos papéis. Cruzará num deles – “A Bela e os Gangsters”, de Marc Allégret – Alain Delon, único rival no cinema francês à sua altura. Delon vai tornar-se também num dos seus mais chegados amigos.
O ENCONTRO COM GODARD
Belmondo conhece de cor os bares daquele Quartier Latin efervescente do fim dos anos 50 que o Michel Poiccard de “O Acossado” frequenta quando chega de carro a Paris, Godard tem plena consciência disso, convida-o antes para uma curta (“Charlotte et son Jules”). Belmondo é desaconselhado a participar pelos amigos, desconfia, aliás, das reais intenções daquele tipo de ar triste, sempre escondido atrás de uns óculos escuros (ainda Godard era crítico nos Cahiers du Cinéma) e que que marcou encontro em quarto de hotel, suspeita que o convite pode ser um engate gay. Mas a curta faz-se e depois Godard fala-lhe de oura coisa. “É a história de um tipo. Está em Marselha. Rouba um carro para reencontrar a namorada. Mata um polícia. No fim, ou ele morre, ou mata a namorada, logo se vê.” Os diálogos são improvisados. Não há guião para seguir (nunca houve em Godard). Num longo obituário escrito há muito, o diário “Liberation” conta ao detalhe esta e muitas outras histórias na edição de hoje. O filme da maior liberdade e da maior insolência nasce assim, cristalizando Belmondo num papel selvagem que lhe assenta como uma luva – e o cinema não mais seria o mesmo depois de “O Acossado”.
ATRAÇÃO PELO CINEMA POPULAR
Acontece que Belmondo foi mais do que o rebelde fora-da-lei que dava ares de Humphrey Bogart e passava o polegar pelos lábios enquanto seduzia Jean Seberg em “O Acossado”, filme revolucionário como raros o foram na história do cinema. Também foi mais do que aquele Ferdinand que o próprio Godard pintou de azul na rodagem de “Pedro, o Louco” seis anos depois, enquanto Anna Karina, na obra-prima “de todas as juventudes”, lhe chamava “petit con”.
Anna Karina e Belmondo nas filmagens de “Pedro, o Louco” (1965), de Jean-Luc Godard
É que Belmondo está-se nas tintas para as guerras figadais que o cinema francês atravessa nesse arranque da década de 60, à medida que a Nouvelle Vague vai capitalizando sem piedade o gosto com o mesmo polegar justiceiro que os surrealistas haviam usado para distinguir a arte que importava. Logo a seguir a “O Acossado”, filma “Contra Todos os Riscos” com Claude Sautet, cineasta que a Nouvelle Vague empurraria para o outro lado da trincheira. E aproxima-se ora de Jean-Pierre Melville, com papéis muito conseguidos em “Amor Proibido” e no sublime “O Denunciante”, ora do cinema italiano, filmando com De Sica, Lattuada, Bolognini…
Belmondo descobre então que o cinema de autor lhe interessa muito menos do que a aura de ator popular que já é a dele. Em 1962 roda pela primeira vez com Philippe de Broca, em “Cartouche”, em que contracena com Claudia Cardinale, dois anos depois repete a dose ao lado de Françoise Dorléac em “O Homem do Rio”, filme de ação e aventuras e grande êxito que até influenciou Spielberg para “Os Salteadores da Arca Perdida”. O encontro com Broca é decisivo e não pode ser esquecido, pois vai definir o essencial da sua trajetória.
Mas isso não impede Belmondo de tornar a Godard a meio da década de 60 para “Pedro, O Louco”. E de a Broca voltar logo de seguida, com a farsa que é “As Atribulações de um Chinês na China”. Bébel faria quatro filmes com Jacques Deray e outros tantos com Claude Lelouch, sete com Henri Verneuil, para Broca atuaria em seis, é aliás graças ao homónimo filme deste que ele era também conhecido por “Le magnifique”(1973). Neste ramo do cinema comercial, vai fazer de tudo e sem duplos, acrobata e “cascadeur” agarrado a helicópteros sobre a laguna de Veneza em “O Irresistível Aventureiro” e agente secreto com sede de vingança em “O Profissional”, ambos de Georges Lautner; boxeur em “O Ás dos Ases”, de Gerard Oury e comissário de polícia em luta contra o narcotráfico em “O Marginal”, de Jacques Deray.
São os tempos em que, ao contrário do que acontecera com Godard, já é Belmondo quem “escolhe” os seus realizadores, algo que também iria suceder com Delon. Nessa altura, os filmes são menos “de” alguém do que filmes “com” Belmondo, pouco ou nada importa quem está a realizá-los (por mais que isso seja injusto). Durante três décadas, dos anos 60 aos 80, e até à degenerescência da sua carreira no decénio seguinte (outro ponto em comum com Delon), Belmondo é a estrela maior do star system francês e esse estatuto é o que basta para garantir um êxito comercial instantâneo, que quase sempre se verifica.
Jean-Paul Belmondo e o seu filho, Paul Belmondo, no Festival de Cannes em 2016
A morte de Belmondo é o fim de uma era, de uma geração? Não se pode falar disso. Delon está vivo embora já quase não trabalhe. Chorou agora a morte do amigo como toda a França, que lhe vai prestar homenagem nacional na quinta-feira. E Godard, o inveterado fumador de charutos que a quase todos sobreviveu, ultima dois filmes na Suíça que ele disse serem os derradeiros. Mas a morte de Belmondo é um adeus que fecha uma porta para sempre. Desaparece o ator mais popular do hexágono depois de Jean Gabin. O homem que interpretava para todos os públicos e se orgulhava de nunca ter ganho um prémio (apenas um César tardio de Melhor Ator, em 1989, por “Itinerário de uma Vida”, e homenagens à carreira de Cannes, em 2011, e de Veneza, em 2016), afinal, era muito mais que um ator. Como recordou o diário “Le Monde”, Bébel “foi uma verdadeira potência a nível económico e sociológico, marcou uma época do cinema francês.”
Notícia exclusiva do nosso parceiro Expresso