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Classicista;
Professora da Univ. do Algarve
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Comprei recentemente este livro de Isabela Figueiredo, A Gorda (Caminho, 2016), que foi muito aclamado pela crítica, quer mais especializada, quer de leitores (quase) anónimos, como blogueiros ou youtubers (a própria Isabel Figueiredo tem um blogue e um canal no You Tube). Fiquei curiosa por saber de onde vinha este consenso sobre uma autora pouco conhecida do público em geral e com um título tão bruto, tão sem rodeios. Sim, porque chamar a alguém «gorda» não é, geralmente, apenas descritivo. Se gostamos da pessoa, dizemos que é «forte», «gordinha» ou «cheiinha». Os nossos valores estéticos (ao qual nos submetemos, frequentemente, sem critério) levam a que exclamemos «como estás magra!», supondo uma admiração positiva, enquanto «como estás gorda!» tenha implícito uma reprovação. Este livro também é sobre isso. Mas é muito, muito mais.
Gorda, acima de 50 anos, retornada, culta
A autora, Isabela Figueiredo, tal como a sua personagem Maria Luísa, nasceu em Moçambique, também veio sem os pais, também viveu no Oeste, também foi gorda. Quando lhe perguntaram se este livro era autobiográfico (podem procurar no You Tube), diz que não, porque é literatura, é ficção, mas diz que sim, porque um autor escreve sempre sobre si.
A narrativa começa e acaba em 2014, mas está cheia de recuos e avanços, através dos quais vamos construindo a história desta criança, desta adolescente, desta jovem mulher e desta adulta. Três anos tinham passados da gastrectomia que a personagem principal (e narradora) fizera, após a qual tinha perdido 40 quilos. Mas, como a própria diz, «Ainda penso como gorda. Serei sempre uma gorda». Esta omnipresença de quilos que já não tem, mas que transportou durante tantos anos, terá moldado a sua postura na vida, associada a várias outras circunstâncias, como o facto de os pais terem permanecido em Moçambique e de a terem enviado para Portugal, em 1975, no início da adolescência, de ter vivido, durante os dez anos em que esteve sem pai ou mãe, com familiares e num colégio interno, de ser inteligente e boa aluna, de ser determinada e independente.
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Que não se pense que o livro enfatiza estes aspetos. Aliás, tal como se pode ver pela forma como o romance está escrito, tudo é dito com alguma frieza e simplicidade, sem outros julgamentos a não ser os que a narradora faz sobre si própria. E aí, sim, é implacável, obrigando-se – e aos outros – a assumirem a crueza (ou a crueldade) que exercem. Há uma cena muito intensa (demasiado grande para reproduzir aqui – pp. 163-166) entre ela e David (o namorado que a marcaria para sempre) em que, depois de ele lhe ter pedido que não o voltasse a visitar, ela faz uma série de perguntas, perguntas legítimas perante um pedido daqueles, como «São os teus pais?», ou «Então são os teus amigos?», ou «Porque sou mais velha?», mas falsamente ingénuas, pois, atrás das respostas evasivas dele, ela sabe a resposta: «Insisto. Vai resistindo. Já intuo a resposta. Temo que a pronuncie, mas insisto em feri-lo com a evidência da sua desumanidade». As perguntas que ela lhe faz, numa dança com os rodeios dele, continuam a supor razões comuns («Tenho algum defeito que prejudique a tua fama e imagem? É porque não sou punk? Não uso calças de ganga ruça? Não fumo charros? Não vou convosco à Festa do Avante? Não alinho em noitadas de álcool? […] porque já sou professora?»), mas o que espera é a verdade, mesmo que brutalmente impiedosa: «”Diz, David. Diz a verdade. Gozam contigo porque arranjaste uma gorda, não é?! É por isso. Por ser gorda. Por não ser como as raparigas de quem todos gostam e falam, a quem assobiam e mandam piropos. As normais. Gozam contigo porque sou gorda!” Temo ouvi-lo, mas quero a confirmação. E quero atirá-lo contra os seus sentimentos, medos e inseguranças».
Maria Luísa, a antivítima
Que nada do que até aqui escrevi vos faça pensar que Maria Luísa nos inspira pena. Nada disso. A narradora mostra as suas fraquezas, o seu lado menos bom ou bonito. Maria Luísa é alguém que se conhece, direta e sem condescendências. Não vou emitir juízos de valor sobre a sua conduta ou reações, porque isso cada um avaliará quando ler o livro (e vou tentar não fazer muitas revelações), mas é alguém que, no meio da sua altivez, da sua brusquidão, do seu egoísmo, tem como fio condutor o amor. É o que pretende. Amor pelos pais, pelo amante, pelos amigos, pelos animais, pelas pessoas. Por si própria. Amor que pode ser desamor, como tantas vezes nos acontece. Quando acabou a relação com David, diz: «Sonhei matá-lo, mas, em nome da sua paz, e do que para mim estava perdido, abdiquei do projeto. Não matamos, Aceitamos a derrota. Parece um filme reles, mas o amor é um filme de péssima qualidade» (p.54); aquando da morte do pai e, uns anos mais tarde, da mãe, as contradições são constantes: «A mamã é um peso e um alívio. Quero que viva para sempre. Quero que morra e me deixe viver. Pelo menos que desapareça, que desocupe o espaço que ocupa na minha vida, que não me chantageie, exigindo de mim o que não retribui. O que penso que não retribui» (p.177); ou «Gosto dela. Não a suporto. Quando morrer não me resta mais ninguém. Nunca mais morre. Não morras» (p.208).
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Pode não ser fácil gostar da personagem, porque não nos deixa ter pena dela. Recusa-se a ser uma vítima, pois põe em si o ónus da escolha desse lugar, com clareza de sobrevivente: «Eu também tenho escolhido, e mesmo que já ninguém me exclua, excluo-me eu, à partida. Conheço muito bem os meus limites. Aquilo a que posso aceder e os que me está vedado para sempre» (p.20). Os sobreviventes, por vezes, parecem duros, mas é a forma que têm de se manterem à tona: «Fui para Grândola em 96, um ano após o AVC do papá. Foi de propósito. Não suportava passar a semana inteira no meio de tanta dor» (p. 119).
Gostei muito deste livro e ainda não saberei as razões todas. É daquelas obras que nos levam a conversar e discutir com os amigos as opiniões que temos formadas sobre os assuntos que ali são tratados (ou apenas aflorados, que o livro não é grande) ou a pensar naqueles assuntos nos quais nunca tínhamos refletido. E este confronto connosco é uma das boas qualidades que esta obra tem.
(Artigo publicado no Caderno de Artes Cultura.Sul)