A arte contemporânea veio abrir as possibilidades relativamente às formas de produção artística e às combinações possíveis na utilização de diversas técnicas, não havendo limites para a integração nas artes visuais, sendo o conhecimento das técnicas artísticas e a criatividade do artista os principais motores para a realização da obra.
Palavras, frases e até poemas são muitas vezes integrados na arte visual contemporânea, ficando por vezes a dúvida se se trata de um trabalho de arte visual ou de arte escrita.
Nos anos 60, com a emergência da arte concetual, começou a ser frequente a utilização de texto nos trabalhos produzidos, havendo até muitas obras que praticamente só usavam palavras, porque pretendiam desmaterializar o objeto da arte e porque pretendiam comunicar ideias ao público. Alguns autores chegavam mesmo a argumentar que todos os trabalhos artísticos são essencialmente linguísticos, de tal forma que, em 1968, alguns artistas conceptuais criaram a revista “Art-Language”, na qual se procura evidenciar a linguagem como arte.
No entanto, convém salientar que, não obstante a grande ênfase dada pelos concetualistas à utilização das palavras, estas já eram utilizadas anteriormente por diversos artistas. Por exemplo, já em “Um lance de dados” (“Un coup de dés”), de Stéphane Mallarmé (1897), era apresentado um poema numa página inteira, encontrando-se as letras com diferentes tamanhos e as linhas dispersas como elementos numa pintura. E considera-se que o poema visual mais antigo foi “O ovo”, de Rodes (300 aC), pois o texto distribuía-se em formato de ovo.
As relações entre a arte visual e a arte escrita também têm existido pelo facto de muitos dos artistas visuais também realizarem trabalhos no âmbito da arte escrita, em particular na poesia, mesmo que não incluíssem palavras ou frases nos seus trabalhos. Por exemplo, Kandinsky escreveu poemas que fazem referência a cores e linhas, aproximando-se daquilo que também fazia através da arte visual. Esta proximidade entre a arte visual e a arte escrita encontra-se bem sintetizada na frase de Leonardo Da Vinci: “A pintura é uma poesia que se vê”.
Muitos dos artistas atuais expressam uma atitude integrativa com a utilização de diversas técnicas das artes visuais na produção de algumas obras. São obras designadas de “técnica mista”, numa constante procura de pontes, articulações, convergências e complementaridades que permitam uma maior harmonia e equilíbrio do todo, ultrapassando este a mera soma das partes.
Neste âmbito destacamos o trabalho desenvolvido por Marisa Mártires, em particular aquele que apresenta no livro “A arte escondida” (2023), edição bilingue realizado em coautoria com a sua mãe, Maria Falcão. A partir de poemas desta última, Marisa e diversos artistas de vários países, na sua maioria membros da “Peace and Art Society” (PAS), criaram obras utilizando diversas técnicas das artes visuais, procurando sintetizar numa imagem a ideia e/ou a emoção expressa em cada poema escrito por Maria Falcão, aproveitando a “força” e a capacidade de síntese da imagem visual. As obras visuais e os poemas permitiram realizar, em dezembro de 2023, uma exposição, com o mesmo título do livro, na Biblioteca da Universidade do Algarve.
Tendo em conta o período que atravessamos, com várias guerras em curso, destacando-se a guerra na Ucrânia e a guerra na faixa de Gaza, escolhi o poema “Sonhador…”, publicado neste livro, ilustrado por uma pintura de Marisa Mártires:
Vislumbro por entre as grades
O mundo verde de esperança
Aqui se vive, de vontades
Apenas sou uma criança!
Nasci em tempo de guerra
O sonhador da esperança
Vislumbro o céu na terra!
Por ser ainda uma criança!
O sonhador de encantos
Dentro, está tudo cinzento
Vou além, no pensamento
Serei sempre uma criança!
Este poema fez-me recordar um outro, intitulado “Sorriso de criança”, que eu mesmo havia escrito em 2009, publicado no meu livro “Foto-pintura e poesia. Escrever com a luz e as palavras”, e que me parece adequado para este início de novo ano, sintetizando uma mensagem de esperança:
Luz, cor, ritmo, energia…
Vida de criança
em azul e cor de rosa.
Ser criança é ser mais alto,
é chegar mais longe
com um salto,
embora só possa ser pequeno.
É ver o belo,
é criar nas pequenas coisas
aquilo que só elas conseguem ver.
É transformar uma pedra
em brincadeira,
um sopro num avião.
É aquilo que todos fomos
e nunca devíamos deixar de ser,
lá bem no fundo.
É sorrir sem parar,
sem preocupação com regras sociais,
haja fôlego para sorrir mais…
O sonho comanda a vida
no sorriso de uma criança!
Deixem-nas sorrir sempre
e sorriam também…
Neste livro procurava escrever um poema para cada quadro que havia produzido até ao momento com a utilização da técnica de foto-pintura, em que colava fotos numa tela e pintava a partir delas, procurando criar um todo coerente. Assim, a partir duma obra visual, procurava criar um poema com o mesmo título, escrito a partir da imagem visual.
No caso do livro “A arte escondida” é usado o procedimento oposto, sendo a imagem visual produzida a partir de um poema escrito anteriormente.
No entanto, em ambos os casos, podemos verificar a complementaridade existente entre a arte visual e a arte escrita. O ponto de partida e o caminho são diferentes, mas a articulação e complementaridade entre a linguagem visual e a linguagem escrita são evidentes, num todo coerente e harmonioso.
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