Aperda de um animal de estimação causa uma dor irreparável e equiparável (ou mesmo superior) à perda de um humano. Afinal cada cão e gato é único, mas será insubstituível? Há uma forma de continuar o legado dos companheiros de quatro patas — a clonagem — mas a prática é ainda muito controversa e levanta vários problemas éticos, sobretudo para o “bem-estar dos animais envolvidos no processo”, alerta Cláudia Baptista, professora de Bem-Estar Animal, Deontologia e Ética Veterinária no Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar (ICBAS) da Universidade do Porto.
A replicação genética de animais de companhia, comum na Coreia do Sul e China, está a ganhar cada vez mais adeptos nos Estados Unidos, onde os donos não querem dizer adeus aos seus adorados animais e, por isso mesmo, fazem cópias deles. A tendência está a ser espoletada pelas redes sociais: a clonagem é sobretudo feita por petfluencers com milhares de seguidores que alimentam as contas com conteúdos dos seus cães e/ou gatos e falam abertamente sobre os clones que lhes custaram milhares de euros a replicar.
Uma das páginas mais conhecidas no Instagram é a “Wander with Willow”. A fotógrafa e influenciadora norte-americana Courtney Udvar-Hazy publicava regularmente fotos de Willow, um híbrido entre lobo e cão, que foram ficando cada vez mais populares. Quando Willow morreu inesperadamente no final de 2018, atropelado por um carro, a sua dona decidiu recorrer a uma empresa no Texas chamada ViaGens Pets & Equine que replica geneticamente animais para fins comerciais.

Assim, de Willow nasceu Phoenix, numa referência clara ao pássaro que renasceria das cinzas. Courtney ficou bastante satisfeita com o resultado final e o envolvimento dos fãs: no início tinha cerca de 1000 seguidores no Instagram, entretanto o número já evoluiu para 264 mil (e 1,8 milhões no TikTok). Mas o sucesso não vem sem críticas: “As pessoas dizem que tenho um cão zombie, ou chamam-me rica e louca. A coisa mais importante para mim foi continuar o seu legado e linha de sangue. Eu não estava bem na altura. Imaginei que pudesse ser algo que curasse um pouco o meu coração”, contou à revista Input.
O significado de clonar um animal de companhia é “questionável” pois, como diz a médica veterinária Cláudia Baptista, o relacionamento entre uma pessoa e um animal é único e a história partilhada entre ambos não pode ser repetida nem copiada. “A noção de singularidade inerente ao nosso entendimento de amizade/membro da família é incompatível com a substitutibilidade incorporada na prática da clonagem”, afirma.

Courtney Udvar-Hazy recorreu à mesma empresa usada por Barbra Streisand para clonar a sua cadela, a partir de células retiradas da boca e do estômago. A cantora e atriz norte-americana revelou à “Variety”, em 2018, que Miss Violet e Miss Scarlett eram réplicas de Samantha, uma Coton de Tulear que tinha morrido no ano anterior com 14 anos.
Esta tecnologia não é nova. A ovelha Dolly nasceu assim há 26 anos, a 5 de julho de 1996, tornando-se no primeiro mamífero clonado a partir de uma célula somática adulta de uma ovelha com seis anos.
COMO É FEITA A REPLICAÇÃO GENÉTICA?
Através da biotecnologia, são retiradas algumas células do tecido do animal vivo ou recém-falecido que se pretende clonar, normalmente da barriga ou orelha. O ADN destas células é posteriormente isolado e injetado num ovo de um animal doador, que teve o seu material genético removido. Este ovo é depois cultivado em laboratório até se formar um embrião que será introduzido numa barriga de aluguer.
A replicação genética é assim feita com a ajuda da gestação de substituição: cadelas e gatas são barrigas de aluguer e dão à luz filhos que não são seus — os clones. Como a taxa de sucesso está longe dos 100%, o processo pode levar anos e sujeitar as fêmeas a doarem vários dos seus óvulos e a terem várias gravidezes de substituição.

ONDE PODE SER FEITA?
A prática pode ser feita em pelo menos quatro países do mundo. A replicação genética de animais de companhia para fins comerciais é comum na Coreia do Sul — foi aliás o país a produzir o primeiro cão clonado em 2005, o Snuppy, um galgo afegão que nasceu a partir de Tai. Na China os serviços comerciais de clonagem, bem como a preservação de células, também são uma prática.
Na Europa, a clonagem para já só é possível no Reino Unido, através da empresa Gemini Genetics, em parceria com a gigante norte-americana ViaGens Pets & Equine. Esta empresa de biotecnologia do Texas, EUA, armazena e replica ADN de cães, gatos e equinos (onde se incluem os cavalos), garantindo dois serviços: preservação genética e clonagem. Isto significa que o ADN dos animais pode ser armazenado por tempo indefinido, para uma possível clonagem futura, o que tem um custo de quase 1500 euros.
QUANTO CUSTA?
O preço varia consoante o animal. Segundo as informações disponibilizadas na página da ViaGen Pets & Equine, clonar um gato custa cerca de 35 mil euros. O mesmo processo para um cão é mais caro: ronda os 50 mil euros. No caso dos cavalos, o preço é ainda mais elevado: quase 90 mil euros. O pagamento é sempre feito em duas prestações iguais.
QUE CARATERÍSTICAS PRESERVAM OS CLONES?
O aspeto físico dos clones tende a ser igual, já a personalidade nem tanto. Na entrevista à Vanity Fair, Barbra Streisand contou que as duas cadelinhas que nasceram a partir de Samantha não herdaram os mesmos traços psicológicos. “Elas têm personalidades diferentes. Estou à espera que envelheçam para poder ver se têm os seus olhos castanhos e a sua seriedade”.
Também Kelly Anderson, petfluencer etreinadora de cães no Texas, perdeu a sua gata Chai repentinamente. Como forma de lidar com o luto e a perda de seguidores (20 mil após a morte de Chai) fez uma cópia: Belle. A nova gata mantém os mesmos olhos azuis e pêlo branco, no entanto a personalidade “é completamente diferente”, disse ao The Sun. “Elas têm alguns traços semelhantes. São muito ousadas e atrevidas, mas essa caraterística pode ser comum à raça. Belle é uma gata totalmente nova”, assegura.
A identidade e comportamento dos animais não é duplicável, e mesmo o aspeto físico não é um dado adquirido. Basta ver o exemplo do primeiro gato clonado, o CC, e o seu doador de ADN, o Rainbow, lembra Cláudia Baptista. Embora fossem geneticamente similares, “os dois gatos pareciam completamente diferentes já que a cor e o padrão da pelagem são influenciados pelo ambiente no útero, algo que não pode ser replicado pela clonagem”, explica a médica veterinária.

Isto acontece porque o fenótipo (características físicas observáveis) resulta da expressão dos genes do organismo, mas também da influência de fatores ambientais e da eventual interação entre os dois, esclarece ainda a professora universitária do ICBAS. “Os clones poderão não apresentar as mesmas características morfológicas e comportamentais do dador devido a alterações genéticas aleatórias e a fatores ambientais (epigenéticos) passíveis de influenciar o fenótipo”.
QUE QUESTÕES ÉTICAS COLOCA?
“Será ético clonar um animal de companhia quando tantos outros são abandonados e alvo de múltiplas provações?”. A questão levantada por Cláudia Batista é muitas vezes usada como argumento contra esta indústria multimilionária, por contribuir para a crise de sobrepopulação de animais, em canis e gatis, à espera de serem resgatados.
Além disso, a taxa de sucesso é problemática pois ronda apenas os 20%, segundo um relatório da Universidade de Columbia, Nova Iorque. Por exemplo, no caso do primeiro cão alguma vez clonado, o Snuppy, foram precisos mais de 1000 embriões colocados cirurgicamente em 123 barrigas de aluguer que, por sua vez, só resultaram em três gravidezes, segundo a revista científica Scientific American. Destas três gestações, houve um aborto espontâneo, nascendo apenas duas crias. Mas um dos recém-nascidos sofreu problemas respiratórios neonatais e morreu ao fim de três semanas, pelo que só sobreviveu um clone: o Snuppy.

Acresce o facto de as ‘cópias’ serem mais propensas a doenças, como têm demonstrado vários estudos científicos. “Os animais clonados têm um risco aumentado de desenvolver anomalias de crescimento, como peso reduzido ao nascimento, órgãos parcialmente subdesenvolvidos ou aumentados, deformidades, insuficiência respiratória, aumento da suscetibilidade a doenças, relutância em mamar e dificuldade em respirar e manter-se em estação”, nota a professora de Bem-Estar Animal, Deontologia e Ética Veterinária.
O processo também não é nada fácil para as fêmeas que geram os clones. “As mães substitutas experienciam transtornos associados à gestação de fetos clonados, como elevadas taxas de aborto, aumento excessivo do tamanho fetal, distocia (dificuldades no parto), hidropisia (acúmulo anormal de líquido em dois ou mais compartimentos), anomalias da placenta e cesarianas consequentes”, constata ainda a veterinária.
No entanto, nem tudo é mau na replicação genética de animais domésticos. Como antevê Cláudia Baptista, esta tecnologia pode ser útil para preservar espécies ameaçadas e clonar cães de serviço de elite, tais como farejadores de drogas ou explosivos, detetores de cancro, e ajuda a pessoas com deficiência ou doenças.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL