Reza a história da humanidade que o caminho do ser humano deu-se lado a lado com os demais seres vivos, nomeadamente, os animais não humanos. Prova disso são as inúmeras pinturas rupestres deixadas pelos nossos antepassados retratando, essencialmente, momentos de caça.
Quando o Homem se assume como caçador-coletor, a criação de gado para fins alimentares ou de cooperação nas lides do campo, além de servir como meio de deslocação, fortaleceu ainda mais esta relação. A forma diferenciada com que os animais são encarados pelo ser humano condena-os, desde logo, à diferença entre a vida e morte – animais de companhia como o cão e o gato VS animais criados com o intuito de servir de alimento como a galinha ou o porco. Poderíamos ainda considerar um terceiro destino como o de servir de meio de transporte ou “máquina” agrícola e, se pensarmos que os únicos cuidados que os mesmos exigem neste contexto assenta basicamente na alimentação, os poucos custos associados à sua subsistência e o fácil acesso poderão justificar que esta prática perpetue até aos dias de hoje.
A Revolução Industrial, com início no séc. XVIII, impulsionou um manifesto avanço tecnológico e possibilitou a invenção de novas máquinas fabris e de transporte, desafiando toda a economia mundial a transferir-se para um novo período da nossa história.
Comparativamente com os seres vivos humanos e não humanos, estas novas máquinas não se afirmam, não manifestam vontade própria ou sentimentos, apesar de serem extremamente eficientes e velozes. Porém, no que refere aos veículos de tração animal, persistem alguns factores que aparentam justificar que tradições totalmente arcaicas e obsoletas continuem a persistir actualmente, apesar de provado cientificamente e segundo a Declaração de Cambridge que, os animais não humanos, manifestam sentimentos similares aos animais humanos, nomeadamente, frio, fome, sede, medo, tristeza alegria, entre outros.
Curiosamente, a forma como os animais são vistos pelas diferentes culturas, doutrinas, religiões e correntes filosóficas salienta uma constante dualidade entre o sagrado e o profano. Para os muçulmanos e os judeus, o uso da carne de porco para alimentação, assim como, a de coelho, lebre e camelo é proibida. Essa obrigatoriedade tem a ver com o estado de pureza, sendo que para estes só quem é puro poderá aproximar-se de Deus. Na Bíblia são frequentes as passagens mencionando celebrações ou rituais recorrendo ao sacrifício de animais. Presentemente, é frequente ficarmos chocados com imagens da China onde é possível reconhecer cães enjaulados e prontos para servirem de alimento e, no entanto, não nos chocamos quando um pequeno cordeiro ou um bezerro é abatido pelos povos europeus. Na Doutrina Espírita ou no Hinduísmo acredita-se na existência de vida após a morte e na possibilidade de regressarmos assumindo a forma de qualquer outro ser vivo, pelo que, toda a nossa conduta na vida presente determinará a forma como seremos tratados numa vida futura. A existência dos animais está, pois, permanentemente entre “a espada e a parede” e à mercê das crenças resultadas dos animais ditos racionais.
Acreditemos no que quisermos, mas, a verdade é que, enquanto refletimos sobre este tema, muitos são os animais que continuarão a sofrer às nossas mãos apesar da sensibilidade de muitos. E se a alimentação parece emergir-se como um dos assuntos mais complexos debatidos na atualidade, o tópico “veículos de tração animal” não incorre no mesmo impasse. Em pleno séc. XXI, numa era em que projetamos carros do futuro com capacidade de se deslocarem sem recurso à presença e condução de um humano, em que idealizamos conter as transformações climáticas, em que ambicionamos dominar e, quem sabe até, habitar noutros planetas é inconcebível depararmo-nos, constantemente, com carroças de funcionamento absolutamente primitivo, sustentadas pelo esforço dos pobres animais que, dia após dia, não conhecem outra realidade que não a de serem subjugados e escravizados até ao último dia das suas vidas em troca de alimento e que, convenhamos, muitas vezes nem nas mínimas quantidades ocorre! Somos, pois, uma espécie de difícil compreensão, em que os avanços civilizacionais parecem estar sempre a par de inúmeros recuos controversos. Pensando num futuro que se adivinha longínquo demais, e transcrevendo o que declarou John Wilmot “serei um cão, um macaco ou um urso, tudo menos aquele animal vaidoso que se vangloria tanto de ser racional”.