Quando as forças russas invadiram a Ucrânia por norte (Bielorrússia), sul (Crimeia) e leste (Donbas), houve uso alargado das armas em que Moscovo tem superioridade esmagadora, caso dos mísseis, tanto de cruzeiro (disparados a partir de navios no Mar Negro) como balísticos, além de ciberataques. Não são claros os objetivos, ainda que Vladimir Putin tenha dito não pretender ocupar a Ucrânia, apenas “desmilitarizá-la” (leia-se, instalar um governo-fantoche em Kiev).
Uma das componentes das operações militares russas, na linha da velha União Soviética, é a maskarova, ou seja, contrainformação e táticas de engano. As forças ucranianas estão obrigadas a combater em diversas frentes e dispersar recursos, sujeitas a um desenlace que poderá variar entre perda de territórios a leste e a sul, e ocupação total ou parcial do país, a começar por Kiev. Isso implicaria a possibilidade de guerrilha nas zonas invadidas, já que as forças atacantes não têm efetivos para controlar cidades com milhões de habitantes.
Moral e motivação também contam
Tanto em pessoal como material, a superioridade é russa: 900 mil militares dos quais 150 mil colocados perto da fronteira. Perante estes, um exército ucraniano cujo efetivo ascende a 209 mil elementos (só parte dos quais deslocados para junto das fronteiras), a que poderão juntar-se 900 mil reservistas com diferentes graus de preparação. No que respeita a tanques, a Rússia tem 3600 contra 1300 ucranianos. Em termos de aviões de combate ou helicópteros, a desproporção é ainda maior: 1200/170 ou 900/170.
Os manuais militares aconselham superioridades de cinco para um em situações de ataque, mas há dados decisivos em combate como o moral e a motivação, difíceis de avaliar. Os ucranianos defendem a sua terra e combatem em terreno conhecido, mas a relativa facilidade com que colunas russas chegaram à antiga central de Chernobyl (com risco de novo acidente nuclear) e a um aeroporto da periferia de Kiev levantam dúvidas sobre a eficácia de comando, controlo e comunicações do lado ucraniano.
As forças armadas russas nada têm que ver com as que sofreram derrotas humilhantes na Chechénia em 1994-96 ou revelaram dificuldades em vencer o pequeno exército da Geórgia em 2008. Contam-se histórias de oficiais terem usado os telefones de jornalistas para contactarem tropas mais avançadas no terreno, ou de ter havido baixas por fogo amigo por a aviação, artilharia e infantaria não comunicarem entre si.
Como Hitler e Mussolini na guerra civil espanhola de 1936-39, Putin usou a guerra civil síria para testar armas e equipamentos e dar experiência de combate a tropas terrestres e, sobretudo, aviadores. Estima-se que 90% tenham sido rodados naquele teatro de operações, em missões de combate nos céus sírios, ainda que sem enfrentarem aviões hostis nem armamento antiaéreo significativo.
A única arma verdadeiramente moderna que a Rússia usa nesta invasão parece ser o caça-bombardeiro SU-35, comparável aos F22 Raptor e F-35 (furtivo) dos americanos ou aos Rafale franceses. O resto são versões melhoradas de material que já existia. São disso exemplo os tanques T-72 B3, ou da espingarda de assalto AK-12 (descendente da Kalashnikov AK-47).
Há armas russas sobre as quais pouco se sabe, caso dos mísseis de cruzeiro Kalibr, lançados de navios de guerra no Mar Negro (tinham sido experimentados durante a guerra civil síria). Ou dos mísseis balísticos Iskander, capazes de atingir todo o território ucraniano, como parecem ter feito. Ou ainda das capacidades de guerra eletrónica, das quais houvera vislumbre no leste da Ucrânia em 2014-15.
Do lado ucraniano parece ter havido um reforço da capacidade antitanque e eventualmente antiaérea, graças a material americano e europeu (como o míssil anticarro Javelin, americano). Os ucranianos, como os russos, tentaram modernizar os seus tanques. De uma feira de carros de combate equivalente aos salões automóveis e aeronáuticos, mas envolvendo competição entre tripulações e veículos de diversos países — o Strong Europe Tank Challenge, realizado anualmente em Grafenwöhr, Alemanha —, os ucranianos trouxeram um T-84 de fabrico soviético com melhorias nos sistemas de pontaria, visão noturna, empastelamento do guiamento dos mísseis inimigos, entre outras capacidades.
A incógnita dos drones turcos
A arma secreta dos ucranianos poderão ser os drones adquiridos à Turquia, que se revelaram devastadores, quer contra as tropas de Assad na Síria quer contra os mercenários russos do grupo Wagner durante a guerra civil da Líbia (onde esta espécie de Blackwater do Kremlin apoiava as forças do marechal Haftar, opostas ao Governo reconhecido pelas Nações Unidas). Dos drones equipados com quatro mísseis, como o Bayraktar TB2, aos pequenos, como o Kargu 2, capazes de fazerem ataques kamikaze, como se portará o arsenal turco num campo de batalha mais sofisticado?
Sem prejuízo da componente política (acabar com um Governo pró-ocidental democraticamente eleito), o objetivo de Putin era, em termos geoestratégicos, criar uma zona-tampão entre a NATO e a Rússia. Tenha a invasão da Ucrânia o desfecho que tiver, o resultado prático poderá ser o oposto. A Suécia remilitarizou a ilha de Gotland, no Báltico, e, junto com a outrora neutra Finlândia, pondera aderir à NATO, enquanto o dispositivo militar da Aliança se reforça na Polónia, Roménia e países bálticos.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL