Alexandre, de 54 anos, é “pescador, só pescador”, explica, porque também podia ser viveirista de amêijoas ou ostras, as duas principais profissões na ilha da Culatra, na ria Formosa, entre Faro e Olhão. Saiu às 5h30 e ainda não eram 8h e já estava a tirar a arraia-miúda do emaranhado de redes e a atirá-la de volta ao mar, onde as gaivotas mal a deixavam tocar na água. Pelo meio ainda encontrou umas lagostas e uns chocos, um ou outro linguado e até uma raia. Aquilo é para ele. O que tinha de vender foi logo descarregar ao porto de Olhão antes de regressar à Culatra, onde nasceu e vive desde sempre. “Não gosto da barafunda das cidades. Gosto aqui do calminho. E tenho um filho com 22 anos que também gosta disto aqui. Trabalha com ostras”, conta.

Na Culatra é assim: os homens trabalham na pesca no mar, as mulheres e os mais velhos nos viveiros de amêijoas, os jovens nos viveiros de ostras, que ficam na Ria. “A ostra é mais fácil do que a pesca e a amêijoa e dá mais dinheiro”, refere Daniel Santos, de 66 anos, viveirista de amêijoas a tempo inteiro desde que se reformou do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). “Tenho 40 mil m2, mas estão em nome do meu filho. Ele não quis ir para a universidade, quis ir para os viveiros”, revela.
“Há aqui uma cultura que atrai as pessoas”, diz Rui Conceição, um pescador de 62 anos. E não é só por causa do mar, que providencia o sustento. “Tem tudo a ver com este povo. Aqui ainda existe amizade para quem cá vive e para quem nos visita”, diz. “E uma solidariedade como há em poucos sítios, e tudo em prol da comunidade”, acrescenta Daniel Santos. O Clube União Culatrense, de que Daniel foi um dos fundadores e jogador, é um exemplo disso. Além dos patrocínios, organiza festas todos os sábados de verão para angariar dinheiro, e a “população adere e contribui com trabalho voluntário”, diz Nélia de Sousa, de 42 anos, vice-presidente do clube. Nascida na ilha, mora e trabalha em Olhão durante a semana e na Culatra ao fim de semana. “Mas assim que os miúdos forem crescidos mudo-me para aqui de vez. Também sou viveirista, e trabalho aqui não falta.”

Ser 100% renovável
A Culatra é conhecida por duas coisas: por viver da pesca e do marisco (há 70 barcos de pesca e 100 viveiristas) e pela força dos moradores. “Isto sempre foi um bairro feliz, mas faltava luz, água canalizada e esgotos. Nem passeios tínhamos, era tudo areia e terra. E fomos nós que conseguimos tudo o que aqui está agora”, com muita luta e persistência, conta Rui Conceição. “Lembro-me bem de quando a eletricidade cá chegou, em 1991. Foi a maior festa de sempre na Culatra. A EDP até nos ofereceu 30 barris de cerveja para celebrar”, recorda Daniel. Em 2010 chegou a água potável e os esgotos e em 2018 as casas passaram a ter um título de propriedade, que só pode ser passado para descendentes diretos. “Assim evitamos a especulação imobiliária e o turismo massificado. Queremos manter a identidade da ilha”, diz Sílvia Padinha, de 56 anos, atual presidente da Associação de Moradores.

Fundada em 1987, entre outros, por Daniel Santos e Rui Conceição, a Associação de Moradores foi — e é — a força motriz do desenvolvimento da Culatra, sempre com o envolvimento da população. Por exemplo, tem incentivado os jovens a investir em viveiros de ostras, para evitar que as empresas francesas monopolizem o negócio; instalou no porto de abrigo painéis solares que abastecem a câmara frigorífica e um barco solar que começou a navegar em julho deste ano; e aderiu à pesca sem lixo e sem plásticos. Além disso, com o programa Culatra 2030, vai ter mais barcos solares, vai limpar a zona de arrumos dos pescadores e ainda espera ter uma produção autónoma de energia nesse mesmo ano. Para isso, criou uma cooperativa, que instalará painéis solares em edifícios e que depois venderá a eletricidade à população a preços mais baixos. “Queremos uma ilha 100% renovável, mais limpa e mais cuidada”, remata Rui Conceição.

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Textos originalmente publicados no Expresso de 26 de agosto de 2022
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL