O advogado foi condenado pelo Conselho de Deontologia a 6 anos de suspensão, mas recorreu e continua a exercer.
O julgamento do processo-crime por burla qualificada acabou com um acordo que o obriga a pagar indemnização às idosas e à anulação da escritura mas as casas continuam sem estar em nome das legítimas proprietárias. Oito anos depois das escrituras fraudulentas, o estado de saúde das vítimas, agora com mais de oitenta anos, está cada vez mais degradado e poderá não ser feita justiça.
AS IDOSAS ASSINARAM PAPÉIS MAS QUE PAPÉIS ERAM ESSES?
Um das irmãs era viúva e tinha ficado com o apartamento do casal. A outra irmã, solteira, trabalhou toda a vida como empregada doméstica interna. Ao reformar-se, agarrou no que tinha amealhado e comprou para si um pequeno apartamento. Ambas tinham a sua casa em Almeirim. Estavam debilitadas e resolveram viver juntas mas acabaram por constatar que estariam melhor num lar.
Preocupadas com a solidão, a velhice e a falta de saúde, pediram ajuda a um advogado. Joaquim Pisco deveria tratar da ida das irmãs para o Lar da Santa Casa da Misericórdia de Almeirim e ficar depois encarregue do aluguer e manutenção das habitações. Maria Filismina não tem herdeiros mas Rosa Maria tem um filho algures a quem pensa deixar o pouco que tem em boas condições.
Neste contexto, o advogado Joaquim Pisco prometeu ajudar e tratar de tudo. As irmãs já o conheciam e até lhe tinham entregue a chave da casa onde moravam. Havia confiança.
TER A CHAVE DE CASA É UMA COISA, FICAR COM A CASA É OUTRA
A 5 de novembro de 2013, na presença do advogado e de uma senhora que julgavam ser representante do lar, as irmãs assinaram papéis. No processo judicial consultado pela SIC, está explicado que os documentos foram lidos em voz alta a cada uma das idosas, em cada um dos quartos em que estavam acamadas e que elas, apesar de não terem percebido bem, confiaram.
Convencidas que eram os papéis para entrar no Lar da Santa Casa da Misericórdia de Almeirim, as irmãs tinham assinado, afinal, na presença de uma notária, que atestou a identidade das signatárias, duas procurações para a venda das casas de que eram proprietárias: uma estava em nome do advogado, a outra em nome de Joaquim Gomes, sobrinho da mulher do advogado.
Uma semana depois estavam feitas as escrituras da venda das casas. Joaquim Pisco, com a procuração em seu nome, vendeu uma das casas a si próprio por 20 mil euros; com a outra procuração, o sobrinho da mulher do advogado vendeu a outra casa à mulher do advogado por 30 mil euros. Estavam, como é de lei, todos presentes no ato: o advogado, a mulher e o sobrinho dela, um jovem bombeiro com pretensões políticas. De acordo com as escrituras, as verbas teriam já sido pagas às irmãs.
No processo judicial ficou claro que nenhuma recebeu um cêntimo que fosse e que nenhuma delas queria vender a casa. Contudo, as duas habitações assim “compradas” chegaram a ser postas à venda numa agência imobiliária, em Vialonga, na área Metropolitana de Lisboa.
“JÁ MATEI DOIS COELHOS COM UMA CAJADADA”
Quando assinaram os papéis que afinal não eram para entrar no lar mas sim procurações para a venda das casas, houve uma frase, repetida, que fez desconfiar as idosas. Joaquim Pisco terá dito “Já matei dois coelhos com uma cajadada”, testemunhou Rosa Maria, ou “Matei 2 coelhos com uma cajadada só” como afiançou ao tribunal Maria Filismina.
Suspeitando do engano, chorosa, ao telefone, uma das irmãs pediu ajuda a um velho amigo: João Carvalho, filho de um antigo patrão de uma delas que, por sua vez, alertou Teresa Fortes Ribeiro uma mulher com laços afetivos às irmãs Marques.
“Quando nos apercebemos, ficámos em choque!”, diz à SIC ainda indignada com tudo o que se tem passado desde então: “Eu não tinha como virar as costas! Elas estavam incapacitadas anímica, física e psiquicamente. Estavam incapazes de levar isto para a frente!”
Teresa Fortes Ribeiro e João Carvalho eram o único apoio emocional e até financeiro das duas irmãs. João Carvalho, por exemplo, foi alertado para o sucedido quando uma das irmãs lhe pediu dinheiro para pagar honorários ao advogado Joaquim Pisco, já depois de terem ficado sem as casas. E só com o apoio de Teresa Ribeiro, as idosas foram efectivamente para um lar, o lar do Centro Paroquial de Almeirim, ainda em dezembro de 2013.
“O ESTADO FALHOU EM TODA A LINHA!”
A queixa-crime apresentada à polícia ficou registada em 2014, na mesma altura da denúncia ao Conselho de Deontologia da Ordem dos Advogados de Évora, o conselho regional que abrange a comarca de Almeirim. A partir daqui, o caso toma outro rumo mas sempre com muitas dificuldades. Afinal, os advogados não gostam de aceitar processos contra colegas, o meio é pequeno e todos se conhecem e as clientes em causa têm poucos recursos.
“Não tenho dúvidas em dizer: há uma justiça para ricos e outra para pobres! O Estado falhou em toda a linha!”, garante Teresa Fortes Ribeiro. Já João Carvalho diz à SIC que, na altura, até chegou a ser ameaçado com um processo judicial por e-mail, o que foi dito e comprovado junto da Polícia Judiciária durante o inquérito-crime que, entretanto, foi para a frente.
DEPOIMENTOS PARA MEMÓRIA FUTURA
O processo-crime chega ao tribunal de Santarém e uma das primeiras coisas que é pedida é a recolha dos depoimentos das idosas para “memória” futura. A defesa do advogado, da mulher e do sobrinho dela opõe-se. Só depois da decisão da Relação de Évora a dar razão ao Tribunal de Santarém, que tinha deferido o pedido do Ministério Público, é que as idosas são ouvidas.
Nesses testemunhos, também consultados pela SIC, Rosa Maria e Maria Filismina contam que o advogado apareceu “com uma senhora que pertencia ao lar e que eu ia assinar para a pessoa me pôr no lar” e que entretanto “o senhor veio aqui dizer para retirar a queixa, que lhe tínhamos estragado a vida”. Ambas insistem que não pretendiam vender as casas, ponderavam arrendá-las para com esse dinheiro poder pagar o lar, e garantem nunca terem recebido “um tostão” pelo pagamento dos imóveis.
APROVEITAMENTO DA DEBILIDADE FÍSICA, PSÍQUICA E EMOCIONAL
Nesta altura, Joaquim Pisco, advogado, Susana Carreira, a mulher do advogado, e Joaquim Gomes, sobrinho da mulher do advogado, estavam já acusados por crimes de burla qualificada.
O julgamento do processo-crime no tribunal de Santarém arrancou em 2021 (mais de oito anos depois das falsas escrituras) com a acusação a dizer que os arguidos agiram conjuntamente “sem haverem pago um cêntimo” a qualquer das irmãs e que o advogado se aproveitou da “fraca escolaridade”, da “debilidade física, psicológica e emocional”, e ainda “iludiu” com alegados conhecimentos para as colocar no lar sem fazer qualquer diligência nesse sentido.
Além disso, remata o Ministério Público: o arguido Joaquim Pisco “causou-lhes empobrecimento pois desapossou-as das casas”.
TRIBUNAL OBRIGA A REVERTER AS FALSAS ESCRITURAS
Para travar o julgamento do processo-crime, que deu brado a nível local onde o advogado mora e tem escritório, foi proposto um acordo que implicava a restituição dos imóveis às duas irmãs, com uma “alteração a nível registral” ou seja, uma reversão das escrituras para que os apartamentos voltassem para o nome das legítimas proprietárias.
Além disso, Joaquim Pisco teria de pagar 10 mil euros de indemnização a cada uma das idosas, no prazo de 5 dias após o trânsito em julgado, que ocorreu a 26 de maio de 2021. Em tranches separadas e em violação do prazo ditado pelo tribunal, o dinheiro foi depositado nas contas das idosas mas as casas continuam ainda hoje em nome do advogado Joaquim Pisco e da atual ex-mulher, “ex” porque o casal, entretanto, separou-se.
E O QUE DIZEM OS “PROPRIETÁRIOS” DAS HABITAÇÕES?
Contactado pela SIC, o advogado “dono” da casa de Rosa Maria optou por não fazer declarações, remetendo para o seu representante legal: “O processo está terminado. O Dr. Joaquim Pisco cumpriu o acordo”, diz o colega José Faustino. A ainda “proprietária” da casa de Maria Filismina, a ex-mulher do advogado, Susana Agostinho, alega que desconhecia a origem das casas que o marido tinha “comprado.
Já Joaquim Gomes, o sobrinho envolvido no esquema, admite que possa ter sido “ingénuo”, associando essa ingenuidade à juventude. No dia em que foram assinadas as falsas escrituras de compra e venda fazia 23 anos.
Joaquim Gomes diz que “foi apanhado pelo meio” neste processo e que julgava estar a “fazer algo de bem”. Em sua defesa, invoca ter sido bombeiro durante 15 anos com intuito de ajudar os mais vulneráveis e destaca: “Não ganhei nada com isso!” Os três arguidos foram todos acusados de burla qualificada e o ministério público não teve dúvidas que “arquitecto” desta manobra foi o advogado Joaquim Pisco.
ADVOGADO SUSPENSO POR 6 ANOS
O Conselho de Deontologia de Évora da Ordem dos Advogados, para onde tinha também seguido uma queixa por parte das lesadas, nunca ouviu a argumentação de Joaquim Pisco. Diz o Relatório Final do processo disciplinar, proferido em Maio de 2021, que “regularmente notificado para se pronunciar, querendo, sobre a participação e/ou requerer as diligências de prova que considerasse necessárias para o apuramento da verdade, o Sr. Advogado nada disse”.
Joaquim Pisco “nada disse” em sua defesa no processo de inquérito disciplinar, faltou sem justificar às audiências para que foi convocado, obrigou a que despacho de acusação fosse publicado em Edital e deixou esgotar o prazo para apresentação de defesa. Acabou condenado a 6 anos de suspensão da atividade profissional.
Mas recorreu da decisão do Conselho de Deontologia de Évora para o Conselho Superior da Ordem dos Advogados e daí poderá recorrer para o Tribunal Administrativo e daí ainda para Supremo Tribunal Administrativo… e, de recurso em recurso, podem passar anos. Joaquim Pisco, entretanto, continua com cédula ativa na Ordem e pode continuar a trabalhar exercendo a profissão de advogado, porque não há trânsito em julgado do acórdão.
VIOLAÇÃO “OSTENSIVA” DOS DEVERES DEONTOLÓGICOS
O Conselho de Deontologia de Évora condena Joaquim Pisco por considerar que houve violação “ostensiva” de vários deveres deontológicos, com a agravante de já existir uma condenação disciplinar anterior. Diz o acórdão que o advogado “agiu com dolo e premeditação” na execução de um “plano para se apropriar dos imóveis das suas clientes”, revelou uma conduta com “elevado grau de ilicitude” merecedora de “reprovação social e profissional”.
O Conselho de Deontologia diz ainda que este comportamento põe em causa não só aquele advogado em particular mas toda a classe e o prestígio da própria Ordem.
CENSURA, ADVERTÊNCIA, MULTA, SUSPENSÃO, EXPULSÃO
Os processos disciplinares a advogados na Ordem chegam aos milhares anualmente. Nem todos chegam a uma acusação, naturalmente, e quando avançam e há condenação as consequências finais têm uma escala, consoante a gravidade da conduta do advogado: censura, advertência, multa, suspensão e expulsão.
Os dados mais recentes da Ordem dos Advogados indicam que, no ano de 2020, houve 11 decisões de suspensão de atividade profissional (que pode ir até um máximo de 10 anos) e uma única expulsão da Ordem. Números mais baixos que em 2019, 2018 e 2017, com casos de suspensão cerca das três dezenas. Já as expulsões, nestes 4 anos a que SIC teve acesso, cabem todas nos dedos de uma mão. Os restantes casos, cuja decisão foi censura, advertência ou multa para os advogados prevaricadores ultrapassaram os duzentos. O Conselho Geral da Ordem dos Advogados não tem informação sobre recursos nem desfecho dos recursos destas decisões.
AS CASAS AINDA NÃO ESTÃO EM NOME DAS IDOSAS
A reversão das escrituras das casas acordada no Tribunal Judicial de Santarém no verão passado ainda não está feita. Há um pormenor processual, sem o qual não é possível o trânsito em julgado da sentença: os arguidos Joaquim Gomes, o sobrinho, e Susana Agostinho, a ex-mulher, têm de dizer formalmente ao tribunal que concordam com a desistência da queixa-crime, o que ainda não fizeram.
A 6 de janeiro, o tribunal emitiu novo despacho, “pela última vez”, para que os arguidos, no prazo máximo de 10 dias, digam se “concordam com a extinção da sua responsabilidade criminal”. Se nada disserem, o processo continua “agendado-se datas para a realização do referido julgamento”.
O ULTIMATO DO TRIBUNAL DE SANTARÉM
Este despacho é quase um ultimato. Seria como se não tivesse havido acordo nenhum em julho. Questionados pela SIC, os advogados dos arguidos em falta com a resposta mostraram-se surpreendidos e garantiram-nos que iriam responder ao tribunal para se “encerrar” definitivamente o caso.
Com o trânsito em julgado da decisão, quando houver, é que os advogados poderão reverter as escrituras no registo predial. Um problema cujo desfecho se verá. Para além do valor das casas, o desgaste psicológico e emocional para as idosas e para quem se interessa por elas é incalculável. Mesmo se um dia, ainda em vida, as irmãs receberem a notícia de que as casas estão de novo em seu nome. Teresa Fortes Ribeiro é peremptória em afirmar: “A Justiça não foi feita!”.
- Texto: SIC Notícias, televisão parceira do POSTAL