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“Eu não abandonei o partido. Eu autossuspendi-me depois de a direção me ter sancionado com dez meses de suspensão na sequência de uma série de posições críticas que tomei em relação à linha política do partido”
Nesta entrevista: Primeiro encontro com Álvaro Cunhal. O estalinismo e a revolução falhada de Krutchev. O PCP dos tempos da ação armada. Os amores clandestinos. A desilusão e o afastamento. A geringonça. Os livros, a música e os poetas. O testemunho de um homem magoado com o seu partido
Entrevista de Ramiro Santos – Jornalista
RS – Quando, onde e em que circunstâncias conheceu Álvaro Cunhal?|
CB – Num café em Paris, na praça de Clichy, em finais de outubro de 1966, num encontro intermediado por Francisco Miguel. Quando o vi não tive nenhuma dúvida. Era ele. Vinha no seu passo elegante e de gabardina puxada. Depois encontramo-nos muitas vezes. Eu fui estudar para o Instituto de Ciências Políticas em Moscovo e um dia, a convite dele, integrei a representação oficial do PCP numa conferência dos partidos comunistas europeus. Ele era uma pessoa muito austera mas disse: vais conhecer dois grande oradores: a Dolores Ibarruri e Max Reimer, secretário geral do PC alemão (RAF).
RS – O que é que sentiu por estar na frente de uma figura mítica como Álvaro Cunhal, chamemos-lhe o grande camarada?
CB – Um grande fascínio, uma grande emoção e uma grande vontade de aprender com ele.
RS – Ele era aquele bloco ideológico frio, distante, sem emoções e pouco afectivo que se falava?
CB – (..pausa..) É difícil… não era um homem frio sem emoções, até porque ele era um artista das letras e das artes. Percebe-se, por isso, que era um homem sensível. Conto-lhe uma história quando o PCP concordou com a formação da ARA (Acção Revolucionária Armada). Houve uma reunião em Paris para preparar uma acção violenta no país, com um ataque ao navio Cunene. O homem indicado era Gabriel Pedro, pai de Edmundo Pedro, que estava muito doente. Fiz essa observação a Cunhal dizendo-lhe: “mas como é que nós vamos enviar um homem nestas condições para uma acção armada tendo de andar num barquito no Tejo?”. E ele, voltando-se para mim, disse: “Olha, ele tem tanta vontade de ir que acho que não podemos negar esse desejo a um revolucionário como ele, que quer morrer assim”.
RS – Mas na expressão dos afectos era uma pessoa distante…
CB – Era…
RS – Reconhecidamente, era um homem de elevada formação intelectual e muito culto… na hierarquia da Internacional Comunista, na escala de um a dez em que lugar o colocaria?
CB – Posso dizer-lhe que era uma figura de destaque e era tratado com enorme deferência por todos, incluindo os dirigentes soviéticos, onde tinha acesso aos corredores do poder. Ele e o argentino Arismendi eram os dois grandes ideólogos fora dos países socialistas. Era uma pessoa para estar entre os dez primeiros, seguramente.
RS – Pergunta-se muitas vezes se Álvaro Cunhal e a direcção do PCP, onde o senhor também estava, terá cometido aquele que pode ter sido o grande erro estratégico do partido, ao querer transpôr para Portugal, o modelo da revolução de outubro quase 100 anos depois.
CB – Há teses que defendemos no passado e que hoje penso não foram certas. Refiro-me à tese de que nas condições de Portugal não podia haver democracia sem monopólios. A outra é a de que haveria um espaço entre o PS e o PCP para a organização de um novo partido que acabou por ser o PRD, e que deu no que deu. Ambos os casos serviram para encurtar muito o nosso espaço de manobra e afastou-nos ainda mais do partido socialista. Foram dois grande erros.
RS – O PCP pensou alguma vez na tomada do poder durante o período quente da revolução?
CB – Uma operação de assalto ao poder, por meios violentos, nunca. O nosso projeto passava por uma via política apoiando o MFA, numa aliança Povo/MFA. De resto, após a célebre reunião de Alhandra de agosto de 1975, o PCP retirou-se de tudo o que cheirasse a conspiração militar, de tal modo que não foi considerado inimigo no rescaldo do 25 de Novembro.
“Há tendências internas no PCP que se opõem a novos caminhos ou inovações, apostando em voltar-se de novo para dentro, convencidos de que se ficarem muito quietinhos não vão perder votos”
“O que não houve na União Soviética foi marxismo bastante. O marxismo estava na gaveta e foi isso que permitiu o estalinismo”
RS – Na clandestinidade como é que resolvia os seus sentimentos mais íntimos, os arrebatamentos amorosos, as paixões, os desejos?
CB – Como na vida normal. Tinha mulher e só não podíamos era manter uma relaçao próxima com os amigos e familiares e, ao mesmo tempo, tinha que ter sempre os cuidados devidos numa situação de clandestinidade.
RS – Foi nessa altura que conheceu Zita Seabra?
CB – Sim, fui controleiro dela na clandestinidade e na UEC, mas o nosso relacionamento só começou depois do 25 de Abril. Naturalmente, já havia antes aproximação e sentimentos…
RS – Teve duas filhas com ela.
CB – Sim, uma é professora de Ciências Políticas na Universidade Católica e a outra é técnica de Informática.
RS – Como é que viu a ruptura e o afastamento de Zita Seabra do PCP?
CB – Não quero falar disso.
RS – Que razões fundamentais o levaram a abandonar o partido?
CB – Discordância por constatar que o PCP continuava fechado sobre si próprio, sem evolução nem abertura para se constituir como solução de poder. Mas eu não abandonei o partido. Eu auto-suspendi-me depois de a direcção me ter sancionado com dez meses de suspensão na sequência de uma série de posições críticas que tomei em relação à linha política do partido.
RS – E desde então, acha que as coisas estão diferentes?
CB – Houve um sinal de mudança que me entusiasmou bastante quando o Jerónimo de Sousa disse que “o PS só não governa se não quiser”. E o desfecho dessa abertura traduziu-se numa solução de poder com a geringonça, e foi um passo em profundidade de grande alcance político que poderá não ter colhido votos no imediato, mas é preciso tempo porque não se pode obter resultados logo. Mas tenho medo que as coisas dentro do partido fiquem piores no próximo Congresso Nacional.
RS – Porquê?
CB – Porque há tendências internas que se opõem a novos caminhos ou inovações, apostando em voltar-se de novo para dentro, convencidos de que se ficarem muito quietinhos não vão perder votos. É ao contrário, e aliás, o processo de erosão eleitoral não é só de agora e vem mais ou menos do tempo dos renovadores.
RS – Fala com Jerónimo de Sousa?
CB – Não falo porque os nossos caminhos não se cruzam, mas quando se cruzam, falamos.
RS – Não lhe liga [telefona]?
CB – Não, não lhe ligo.
RS – Carl Marx disse que é possível chegar ao poder pela via eleitoral. Neste caso está com Marx?
CB – Exato, exato, é isto que defendemos na renovação comunista, mas tendo sempre presente que o processo democrático não se esgota nas eleições.
RS – Entre Marx, Lenine, Kerensky e Trotsky, de que lado está?
CB – Marx, aliás, o que não houve na União Soviética foi marxismo bastante. O marxismo estava na gaveta e foi isso que permitiu o estalinismo. Estaline foi uma desgraça e marcou o país de tal maneira que apesar da revolução de Krutchev não foi possível revertê-lo. Krutchev foi um homem de uma enorme coragem – nem se calcula – e se fosse um tirano não tinha caído, nem ido de férias para o Mar Negro deixando a conspiração à solta.
RS – Olhando para a sua vida… repetiria tudo outra vez?
CB – Eu tenho uma visão muito positiva dos comunistas da minha geração porque foram excepcionais na luta, na entrega, no combate e na resistência. Deram tudo para mudar o mundo. Muitos a própria vida.
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QUESTIONÁRIO PROUST
RS – Carlos Brito tem editados 6 livros de poesia e 9 de prosa. Dos poetas que lhe apresento, quais os seus preferidos: Pessoa, Camões, Ary dos Santos, José Gomes Ferreira?
CB – Pessoa, Camões e… Alexandre O’Neill.
RS – No romance: Camilo, Eça, Alves Redol, Manuel da Fonseca, Álvaro Cunhal, Saramago?
Camilo, Eça, Manuel da Fonseca e José Saramago.
RS – E dos estrangeiros: Tolstoi, Dostoievski, A. Solyenitsin e Máximo Gorki?
CB – Tolstoi.
RS – Música: clássica, ligeira, jazz, rock, heavy metal, fado?
CB – Clássica e fado, mas também rock, de vez em quando.
RS – Figura da nossa história?
CB – Em relação às figuras da nossa democracia, não há ainda o distanciamento temporal e, por isso, vou recuar na história e escolho D. João II e D. Dinis. Da primeira república destaco Afonso Costa que foi um grande governante, reconhecendo embora que não recolhe a unanimidade que o possa considerar como os outros.
RS – No futebol, veste de vermelho?
CB – Não, de verde. Sou um sofredor sportinguista.
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O MOBILIZADO
RS – Como gostaria que o recordassem no futuro, as suas filhas, netos e os portugueses em geral?
CB – Um homem que se entregou à luta para se conseguir um mundo melhor. De outra forma: um mobilizado para a transformação do mundo!
RS – Que conselho deixaria a um jovem nestes tempos de indefinição, de falta de rumo, de populismos e de perigos à solta? Que vale a pena ter esperança, usando o título de um livro seu?
CB – Sim, vale a pena ter esperança e trabalhar para ela.
RS – Finalmente, uma pergunta que não lhe fiz e que ninguém ainda se lembrou de fazer?
CB – Não há perguntas e foram já dadas todas as respostas.
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