O mais prestigiado torneio de seleções de futebol do mundo vai realizar-se num país onde os progressos civilizacionais, predominantemente alcançados em várias regiões do globo, tardam ainda em chegar.
As restrições e violações de direitos humanos no que diz respeito às mulheres e à comunidade LGBT+ são uma infeliz realidade em quase todo o Médio Oriente e o Qatar não é exceção.
As mulheres enfrentam diariamente situações de discriminação. A Amistia Internacional (AI) explica que, sob as regras da “tutela masculina” – atribuída geralmente ao marido, pai, irmão, avô ou tio – as mulheres vivem essencialmente dependentes de um homem.
Precisam da autorização deste tutor para decisões importantes, como casar, estudar no estrangeiro, desempenhar funções governamentais ou viajar para o estrangeiro até determinada idade.
Nos casos em que uma mulher queira divorciar-se do marido, a lei também não as protege, dificultando esse desfecho. Além disso, mulheres divorciadas estão impedidas de ficar com a guarda dos filhos.

O caso de Paola Schietekat
Paola, uma mulher mexicana de 27 anos, chegou ao Qatar em fevereiro de 2020 para trabalhar para o Governo na organização do Mundial 2022. Um ano e meio depois, revelou ter sido vítima de uma agressão sexual.
Paola tentou registar a queixa, mas, quando o fez, o caso virou-se contra ela, com a mexicana a ser acusada de sexo extraconjugal, considerado crime na lei islâmica.
A jovem foi condenada a sete anos de prisão e cem chibatadas. Contudo, foi-lhe oferecida uma alternativa: para se ver livre da pena, teria de casar-se com o agressor.

Paola partilhou a sua história numa publicação no Facebook: “Após este processo, percebi que, apesar dos meus diplomas académicos, preparação profissional, independência financeira e apesar de trabalhar para o Governo do Qatar, sou vulnerável a violações de direitos humanos por instituições arcaicas e abusivas, e incapaz de encontrar proteção no meu consulado”.
A jovem acabou por conseguir sair do Qatar no ano passado e regressou ao México, onde lamentou não ter recebido qualquer apoio jurídico ou diplomático até o caso ganhar mediatismo.

Em abril deste ano, o Governo mexicano informou que o processo penal contra Paola foi devolvido pelo juiz ao órgão equivalente à Procuradoria, depois de os argumentos da defesa terem sido ouvidos. Algo que, na prática, “conclui o processo penal” a favor da jovem mexicana, como a própria informou no Twitter.
“Fui submetida ao exame físico mais invasivo da minha vida”
Várias mulheres australianas que estavam a bordo de um avião da Qatar Airways foram forçadas, em outubro de 2020, a realizar um exame vaginal, após ser descoberto um recém-nascido abandonado no aeroporto de Doha, capital do Qatar.
As mulheres foram retiradas de dentro do avião por seguranças armados e levadas para ambulâncias na pista do aeroporto, onde foram examinadas por enfermeiras. Alegam que os exames não foram consentidos e, na altura, não receberam qualquer explicação sobre o que estava a acontecer. Cada exame durou cerca de cinco minutos e cada uma delas foi posteriormente escoltada até ao avião.
Quando chegaram à Austrália, apresentaram queixa e o caso captou a atenção mediática e mereceu a condenação de vários países. Foi aberta uma investigação na sequência das queixas apresentadas e um funcionário do aeroporto foi condenado a uma pena suspensa.
À BBC, uma das mulheres recorda que, naquele dia, foi “submetida ao exame físico mais invasivo” da vida dela. Outra conta que tem pesadelos recorrentes com o que aconteceu.
Mais de um ano depois, em novembro de 2021, decidiram voltar a processar as autoridades do Qatar por entenderem que o caso caiu no esquecimento. Acusam o Governo do Qatar, a Autoridade de Aviação Civil do Qatar e a Qatar Airways de agressão e invasão e exigem uma indemnização, um pedido de desculpas formal e a garantia de que casos como o delas não se voltem a repetir.
Para além das mulheres australianas que seguiam naquele voo, os exames ginecológicos foram feitos também a outras mulheres de pelo menos 10 outros voos da companhia aérea.

A perseguição à comunidade LGBT+
Segundo a Amnistia Internacional, quaisquer condutas de cariz sexual entre homens representam um crime, punível com uma pena que pode chegar aos sete anos de prisão.
O Artigo 296 do Código Penal do Qatar refere que “liderar, instigar ou seduzir um homem, de qualquer forma, para cometer sodomia” e “induzir ou seduzir um homem ou uma mulher, de qualquer forma, a cometer atos ilegais ou imorais” é crime.

Detenções arbitrárias e maus-tratos
A organização não-governamental (ONG) Human Rights Watch (HRW) acusou, a 24 de outubro, a polícia do Qatar de ter detido arbitrariamente membros da comunidade LGBT+, sujeitando-os a maus-tratos. Os testemunhos reunidos pela ONG indicaram que as mais recentes detenções ocorreram em setembro.
“A Human Rights Watch documentou seis casos de espancamentos severos e repetidos e cinco casos de assédio sexual sob custódia policial entre 2019 e 2022. As forças de segurança prenderam pessoas em locais públicos com base unicamente na sua expressão de género e analisaram ilegalmente os seus telemóveis. Como requisito para a sua libertação, as forças de segurança ordenaram que as mulheres transgénero detidas participassem em sessões de terapia de conversão num centro de ‘apoio comportamental’ patrocinado pelo Governo”, indica o comunicado da HRW.
A Human Rights Watch entrevistou seis pessoas, incluindo quatro mulheres transexuais, uma mulher bissexual e um homossexual.
“Todos disseram que agentes do Departamento de Segurança Preventiva os detiveram numa prisão subterrânea (…), onde assediaram verbalmente e sujeitaram os detidos a abusos físicos, alvo de pontapés e socos, até sangrarem. Uma mulher disse que tinha perdido a consciência. Os agentes de segurança também infligiram abusos verbais, extraíram confissões forçadas e negaram aos detidos o acesso a aconselhamento jurídico, família e cuidados médicos. Os seis disseram que a polícia forçou-os a assinar promessas, indicando que iriam ‘cessar a atividade imoral'”, indicou a ONG.

O momento em que um adepto confrontou um diplomata do Qatar
No passado dia 20 de setembro, um adepto confrontou publicamente o embaixador do Qatar na Alemanha, durante uma conferência sobre direitos humanos no futebol organizada pela federação alemã.
“Sou homem e gosto de homens. Isto é normal, portanto habituem-se ou fiquem fora do futebol. Porque a regra mais importante no futebol é que o futebol é para todos. Não importa se és lésbica ou gay, é para todos. Para os rapazes, para as raparigas, para todos”, afirmou.
“Têm de abolir a pena de morte, têm de abolir todas as penalizações a questões do foro sexual ou de identidade de género. A regra de que o futebol é para todos é muito importante. Não podemos permitir que a quebrem por muito ricos que sejam. São mais do que bem-vindos a juntarem-se à comunidade internacional do futebol e, claro, para receberem um grande torneio. Mas no desporto, é como é, têm de aceitar as regras”, concluiu o adepto.
O embaixador não proferiu qualquer palavra nem expressou qualquer reação.
Braçadeiras contra a discriminação
A FIFA tem sido pressionada por várias federações europeias para que os seus capitães usem uma braçadeira com um coração de arco-íris durante os jogos do Mundial, num ato de protesto contra a discriminação.
As duas últimas campeãs mundiais França e Alemanha estão entre as seleções europeias finalistas que aderiram à campanha One Love, que começou nos Países Baixos.
As regras da FIFA proíbem as equipas de apresentar os seus próprios desenhos de braçadeiras para o Mundial e especificam que devem usar equipamentos fornecidos pelo órgão regulador.

FIFA e Emir do Qatar prometem Mundial “sem discriminação”
Em setembro, o Emir do Qatar deixou uma garantia: todos os adeptos vão ser recebidos no Campeonato do Mundo “sem discriminação”.
Tamim bin Hamad al-Thani afirmou à Assembleia-Geral das Nações Unidas que o povo qatari “abriria portas para todos, sem discriminação, para que possam desfrutar dos jogos e do ambiente fantástico do torneio”.

No mesmo sentido, o presidente da FIFA, Gianni Infantino, tem reafirmado as promessas de um Mundial “inclusivo” e “livre de discriminação”.

O organismo que gere o futebol mundial deixou recentemente a garantia de que o uso de bandeiras da comunidade LGBT+ será autorizado nas imediações dos estádios.
- Texto: SIC Notícias, televisão parceira do POSTAL