A eleição de Volodymyr Zelensky na Ucrânia, em 2019, tornou-se um case study pela sua rapidez e pelo caráter não convencional. Uma equipa de três investigadores da Universidade da Flórida do Norte, nos Estados Unidos, analisaram o fenómeno e publicaram um estudo no qual concluem que, enquanto comediante, Zelensky já utilizava uma “narrativa presidencial”, o que terá contribuído para conquistar 73% dos votos nas eleições presidenciais.
Assinado por Nataliya Roman, Berrin Beasley e John Parmelee, e publicado no “European Journal of Communication” em maio de 2021, o texto indaga sobre as razões que levaram Zelensky, que anunciou a sua candidatura à presidência ucraniana apenas três meses antes da primeira volta eleitoral, a ser eleito com uma vantagem jamais antes obtida no país. E o antecedente de ter dado corpo à personagem de um presidente outsider e acidental na série “O Servo do Povo” — que a Netflix irá disponibilizar em Portugal nas próximas semanas, assegura o “Correio da Manhã” — terá jogado a seu favor na hora de passar da ficção à política pura e dura: “Zelensky encarnava o papel de um professor que ganhou a presidência depois de um vídeo viral o mostrar a erguer-se contra a corrupção na Ucrânia, granjeando-lhe apoio popular. A comédia retrata um presidente a viver um estilo de vida modesto, invulgar nos políticos ucranianos, e a lutar contra uma ‘demasiado real’ corrupção governamental.”
Durante a sua curta campanha, anunciada na televisão na noite de ano novo, Zelensky deixou que a persona ficcional definisse a sua imagem, diz o estudo, notando que mesmo nesses meses o ator não abandonou os projetos da sua produtora. E os últimos episódios da série foram transmitidos dias antes das eleições. Houve, deste modo, “uma sobreposição” da presidência ficcional com a real, dizem os investigadores.
A isto soma-se uma campanha em que se apresenta como um outsider que “não faz discursos, evita entrevistas com jornalistas e, até ao último dia da campanha, não participa em nenhum debate”. Citando o Fundo de Iniciativas Democráticas, revela-se que 80% do apoio a Zelensky proveio dos votantes com menos de 30 anos, ao que não terá sido alheio o facto de quase toda a sua campanha ter sido virtual, através das redes sociais — algo de que os políticos ucranianos nunca se tinham servido antes.
Os autores do estudo baseiam-se nas teorias de Mulligan e Habel sobre o “enquadramento ficcional” e o modo como os filmes influenciam as opiniões políticas e partidárias, referindo que “examinar comédias é importante porque aquilo de que nos rimos afeta o que pensamos sobre os políticos”.
Na série, a personagem de Holoborodko, o novo e inaudito presidente, contrata um grupo de amigos, como ele, recém-chegados à política. O seu staff passa por situações hilariantes enquanto lida com a corrupção e com os burocratas do sistema ucraniano. “Embora o guião da série seja ficcional, as suas questões assemelham-se à realidade ucraniana, na qual os oligarcas controlam os legisladores, os políticos são corruptos, e os interesses internacionais pressionam o governo a produzir reformas”, escrevem os autores, que examinaram as 227 cenas dos 23 episódios da primeira temporada da série, por meio de análise tanto qualitativa como quantitativa.
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Esta análise concentra-se em aspetos específicos, como o número de vezes que Holoborodko se apresenta como ‘chefe do executivo’, ‘candidato político’ e ‘cidadão privado’, concluindo que o primeiro é predominante em 80% das cenas. “No 5.º episódio, quando se reúne com os membros eleitos do parlamento, ele lembra-lhes que são servos do povo e, como tal, não deveriam ter estilos de vida mais luxuosos do que as pessoas que servem. Ele diz: ‘Onde está escrito que os servos tenham de viver melhor que os seus amos? Em vez de servir o povo, vocês são os lacaios dos oligarcas’”, exemplifica o estudo.
Da mesma forma, na série, “desde os primeiros dias no cargo Holoborodko mostra um nível sem precedentes de honestidade e determinação em mudar o status quo”. “Ele recusa viver no palácio presidencial, andar de limusine e ter segurança pessoal. No 4º episódio, diz: ‘Por que razão devemos trabalhar duramente para sustentar os gestores nos seus infindáveis palácios, carros, criados e seguranças?’”, lê-se na publicação. Esta debruça-se também sobre a frequência com que, na série de televisão, a personagem aborda “mudanças que afetam o cidadão comum” — como obras nas estradas, o pagamento de dívidas aos funcionários do Estado ou a descida dos impostos.
“A personagem de Holoborodko relaciona-se facilmente com o público”, confirmam os investigadores, “por falar contra muitas práticas com as quais os ucranianos estão frustrados: a corrupção, o estilo de vida extravagante das elites políticas e a indiferença insensível face aos problemas do ucraniano comum. Holoborodko é mostrado a viver como muitos ucranianos mesmo depois de se tornar Presidente, morando com a família num apartamento minúsculo, usando os transportes públicos, fazendo refeições simples e por vezes passando por dificuldades financeiras”. Por fazer está um outro estudo que “meça a influência do retrato de Holoborodko nas audiências, comparando-a com a perceção destas” sobre o real Zelensky. Mas os investigadores fizeram esta análise em 2021, quando as sondagens indicavam que o Presidente ucraniano teria diminuído as intenções de voto de 70% para 20% — e o fim da guerra era ainda uma das promessas eleitorais por cumprir, não a realidade estridente e crua a que hoje assistimos.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL