Ficam estranhas as lágrimas quando escorrem dos olhos de um cego. É como se viessem das profundezas da pessoa que está lá dentro, de alguém sitiado no seu núcleo, como eles, os habitantes dos Hangares, ilha da Culatra, União das Freguesias de Faro (São Pedro e Sé), Algarve. Nos Hangares habitam 95 pessoas, que vivem sem água canalizada, sem luz e sem rede de esgotos, sem parar no seu cais a carreira marítima que une a ilha da Culatra a Olhão, sem escola, médico, farmácia, uma mercearia, um serviço que seja. É como se fossem uma ilha dentro de outra. Neste Portugal do século XXI, entretido a discutir, ora as bazucas, ora a reinstituição da pena perpétua, abolida em 1884, eles vivem como se ainda estivessem perdidos nesse século (XIX).
Já não bastava a pobreza, não faz muito tempo um glaucoma roubou a visão a Carlos Cândido da Silva Neves, nascido e criado nos Hangares, onde toda a gente o conhece por Cândinho, deixando-o como uma criança perdida no escuro. Cândinho tem 73 anos e nasceu ali mesmo, nos tempos em que vinha uma parteira a casa. É descendente dos primeiros habitantes (pioneiros) dos Hangares.
Ainda está a aprender a imaginar o que antes via mas, por incompreensível que seja o fenómeno, é capaz de jurar que as memórias se tornaram absolutamente nítidas, embora desobedientes. Está sempre a ver o mar, a juventude, a guerra, ele a andar no mato, a explosão de uma mina, a sua farda a cobrir um camarada feito em pedaços, as redes, o peixe, ele a tremer de frio, dormindo ao relento num barco da Hidráulica do Guadiana, quando tinha 14 anos e era moço de convés, jurando à lua que um dia havia de se tornar mestre de hidrografia, um sonho que ele cumpriu, muito antes da escuridão se tornar definitiva.
Numa mão tem a bengala, na outra a mão de Rosa Neves, a sua mulher, que não é dali, mas é como se fosse, dedicando-se a deixar em livro os volumes da história dos Hangares e dos seus habitantes. Quando ela era menina, o pai tinha uma casa no núcleo do Farol. E, atenção: ser do Farol e dos Hangares é como pertencer a planetas diferentes. O mesmo se pode dizer em relação à Culatra, núcleo que da ilha recebeu o nome. A ilha da Culatra chamou-se outrora Ilha dos Cães.
Ela fez a instrução em Lisboa, mas a separação dos pais tornou-a habitante do Farol. Quando se cruzava com ela, o pai de Cândinho pedia-lhe sempre para ela enviar uma carta ao seu filho que estava no Ultramar, sabe-se lá a passar por que tormentas. Em Angola estava a ser traçado o destino, sem o destinatário da carta saber. “Eu tinha uma vaga ideia de quem era, já o tinha conhecido, mas não havia relação nenhuma. O pai dele pediu muito para eu lhe escrever essa carta, que ele estava para fazer anos e havia de ser importante para o seu ânimo. Eu lá lhe escrevi. Olhe, deu nisto”. Isto foi um casamento para a vida, como dantes se usava, embora os seus pais não fossem exemplo. Rosa nunca imaginou que um dia teria de ser o amparo e os olhos do marido, nem que este tivesse de andar por aí a tactear o vazio.
“O meu pelotão tinha 25 homens, regressaram três”, disse o marido, de novo na guerra. “Sobrevivi ao Ultramar para isto”. O mestre Cândinho, que conhece o mar como ninguém, já não é mestre de si. Contra este destino ele não pôde lutar.
Por trágica ironia, tem de entregar as forças que lhe restam para lutar contra um gigante invisível, que não só votou os Hangares ao abandono, como quer forçar os seus residentes a abandonar aquele lugar, num jogo de muita paciência e pouco escrúpulo, usando o expediente da exaustão e o pretexto da erosão, forçando os mais jovens e os mais velhos a partir pela política do nada. Os hangarenses não conseguem compreender como na mesma ilha uns têm tudo e os outros nada têm, com a água, a eletricidade e os esgotos a passar debaixo dos seus pés e o barco que faz a ligação entre os outros núcleos e Olhão a passar a metros do seu cais. Dói mais do que vento gélido do inverno, fazendo facas dos grãos de areia.
ESTRANHA POLIS DE VIDA
A ilha da Culatra tem três núcleos populacionais, bastante distintos e com a sua hierarquia social perfeitamente dividida. O Farol é considerado território elitista, por ser onde ficam as “casas dos ricos”, tem os seus habitantes permanentes e as vivendas de veraneio de quem vive noutro lugar. Na Culatra, ficam os bens e os serviços e a escola e a delegação da Junta de Freguesia.
Nos Hangares, que curiosamente é o maior núcleo em área, também aquele com maior extensão do cordão de duna, teoricamente aquele que se encontra mais protegido das ameaças climáticas, fica uma população abandonada à sua sorte, que há longos anos resiste na sua vontade de permanecer junto das suas raízes e da sua história, que a Direcção-Geral do Património Cultural descreve assim: “Os hangares que se situam junto à água, na zona norte da ilha, foram construídos na sequência da Primeira Guerra Mundial.
Deles apenas restam os vestígios das fundações do que seriam duas estruturas com rampa de alvenaria lajeadas a pedra e cobertas por telha marselha. Destinavam-se estas construções ao estacionamento de hidroaviões que faziam a vigilância aérea desde Vila Nova de Mil Fontes até Vila Real de Santo António. A obra que foi iniciada pelo tenente aviador Adolfo Trindade terá sido depois finalizada pelo oficial Santos Moreira em 1918. No local foi também erguido um pequeno edifício para transmissões radiofónicas e uma cisterna de abastecimento”. O Centro de Aviação Marítima da Culatra seria desativado após a II Guerra Mundial. Boa parte dos terrenos do núcleo dos Hangares passaram para a Marinha Portuguesa, que hoje ali mantém um terreno abandonado, cercado de arame farpado, com um edifício de apoio mais pequeno que a mais pequena das casas de habitação deste núcleo proscrito.
E os Hangares nunca mais foram o que eram, embora os residentes dali quase fossem obrigados a ali ficar, pela política demográfica da ditadura, que queria manter aqueles redutos do Sotavento algarvio, ilhas barreira da Ria Formosa, povoados, como bem comprova a instalação de um posto da Guarda Fiscal na década de 50, assim como as casas dos guardas e das respectivas família, no sector central dos Hangares, junto ao seu núcleo habitacional. Tudo isto, a que se juntam os vestígios históricos da antiga carvoaria, são agora ruínas. Já só vivem na memória dos hangarenses mais velhos. Os guardiões das memórias dos Hangares, porém, não são de se deixar vergar.
Não só é triste como é desumano, uma indignidade fazê-los viver sem saneamento básico, sem água canalizada, sem eletricidade, como um sobrevivente de um século há muito perdido no reino do “Allgarve”, uma utopia paradisíaca, onde não há água que falte para tornar as planícies em campos de golfe, resorts em áreas protegidas, os PDM na concretização de idílios turísticos, com mais hotéis que cogumelos, mais turistas do que nativos, com uma boa parte dos algarvios transformados em trabalhadores precários e sazonais, rezando em inglês – em certos locais já adquiriu direitos de língua autóctone -, aos deuses do sector terciário. São muitas as tristezas inerentes ao sítio onde se pertence, embora nenhuma se compare à tristeza de estar a ser forçado a sair deste lugar. É exatamente isso que está a acontecer. Dos 95 habitantes dos Hangares, não há um que não nos diga que por trás desta “lenta expulsão” se encontram interesses imobiliários. “O nosso chão dá um excelente resort, não é verdade? Não venham atirar areia para os olhos de uma pessoa que não vê.”
Talvez alguém se tenha esquecido que a interioridade a que foram condenados desde sempre os habitantes dos Hangares criou neles um ADN de resistência. Algo que só mesmo os de lá compreendem. As primeiras casas dos Hangares eram de colmo. “Os ventos arrancavam os telhados. Chovia dentro de casa. Passámos aqui o que o Diabo não quis”, recorda Cândinho. Aquele núcleo é o seu lugar e eles não estão dispostos a cedê-lo. Há uma média-metragem, filmada nos Hangares, com a ficção da sua realidade, cujo título diz tudo: “Hei-de Morrer Onde Nasci”.
Os hangarenses já souberam resistir a tudo o que lhes falta e até à anunciada onda de demolições no seu núcleo. “Esta luta já dura há tantos anos, que às vezes mais parece um modo de vida”, diz José Lezinho, que é mestre mariscador e presidente da única instituição viva neste sítio, que é também a única que tem água da torneira: a Associação de Moradores do Núcleo dos Hangares. O barco de José Lezinho, que normalmente tem à proa o seu destemido cão, com as orelhas desfraldadas como bandeiras, a tremer como varas verdes ao vento, substitui-se muitas vezes à carreira marítima, pois o seu barco é dos poucos que pode atracar no cais dos Hangares.
Para apanhar a carreira marítima para Olhão, os habitantes deste núcleo têm ir a pé até ao Farol ou à Culatra, com os pés enterrados na areia. Para novos e velhos, um caminho penoso, que até por orgulho lhes custa fazer. A população dos Hangares não é diferente de um sítio qualquer do interior. Os novos tiveram de sair, os outros ali foram envelhecendo. Nem sequer uns passadiços lhes deram. “É como se não existíssemos”, diz José Lezinho, rosto e porta-voz desta luta.
Já vão longos os tempos em que da Câmara Municipal de Faro, concelho a que a Culatra pertence, sentiu uma brisa favorável para os lados dos Hangares, na vigência de Macário Correia. Um processo que se reverteu nos tempos de José Sócrates no Ministério do Ambiente e Ordenamento do Território, com a criação da famigerada Polis – Ria Formosa. Lezinho já tem a sua conta de vezes em que andou pela Assembleia da República a debater-se pela causa dos Hangares. Ele não é de políticas nem faz questão de estar na presença de políticos, é pela resolução do assunto que eles são, para o qual já parece ser necessário um milagre e, já agora, dias com 48 horas.
ISTO JÁ NÃO VAI LÁ COM BOICOTES
A verdade, e o tempo está farto de o provar, é simplesmente esta: “Dos responsáveis deste país, ministros, secretários de Estado, até o presidente da República, já para não falar no tempo das campanhas eleitorais, não há quem não nos dê razão. Todos nos prometem fazer o que é justo, mas ninguém o faz”. Nos Hangares, não há uma única obra de melhoramento que seja autorizada. “Nós estamos desgraçados. Aqui até tirar água do poço é proibido”, tinha dito Cândinho, sem a menor ironia. “Eu não vejo, mas eu sinto. Há aqui muito dinheiro em jogo”, alvitrara. O mesmo, e com a mesma veemência, diz José Lezinho, pois há muito que se esgotaram as “falinhas mansas”.
Nas eleições autárquicas do passado dia 26 de setembro, Lezinho e os habitantes dos Hangares colocaram de novo a sua luta em tempo de antena. Algo que já se tornou numa espécie de tradição, tão longínquos são os seus apelos. Na Culatra eles boicotaram pacificamente, como é seu timbre, as mesas de voto em frente à Escola Básica da Culatra. Nos Hangares, a existência de uma escola era como um sonho tornado realidade, embora esteja entre outras coisas igualmente básicas, como o aquecimento, um micro-ondas, um secador de cabelo. Isso já são luxos que os hangarenses não se podem permitir. Para eles, já bastava o mínimo dos mínimos: água, luz, alguma dignidade.
Os habitantes dos Hangares são quase obrigados a viver da mesma forma que ali viveu Manuel Lobisomem. Nem vale a pena chamar outro nome ao primeiríssimo habitante daquele lugar, justamente batizado “pioneiro”. Como tantos outros das redondezas, Manuel era funcionário da Hidráulica do Guadiana. Foi, aliás, a companhia que lhe autorizou à construção da primeira casa dos Hangares, em 1932, que é hoje um símbolo da resistência, tendo na sua parede de madeira uma placa que diz: “Rua 1º Pioneiro Manuel Lobisomem”.
É uma casa tão pequena como são os Hangares num contexto nacional. Mas, tal como os hangarenses, está de pé, contra ventos e marés. Não é difícil perceber que foi o imaginário coletivo do núcleo dos Hangares que criou no senhor Manuel o mito de ser Lobisomem, passado a sua alcunha para apelido, como se faz no Alentejo. Cândinho, que é neto de Lobisomem, recorda-se de ser criança e de ver a sua avó a queimar todas as roupas do avó. “Dizem que ele se transformava nas noites de luz cheia. Nessas noites, não havia quem se atrevesse a sair de casa. Nem essas memórias, hoje tão distantes, conseguem tornar-se doces, no meio da sua amargura residente.
“Eu fiz esta casa com as minhas próprias mãos para me poder casar quando vim da guerra.” Jamais imaginou que ali tivesse de combater outra, pelos vistos, “contra tudo e contra todos”. Os hangarenses só querem o que lhes é devido na condição de gente, cidadãos portugueses, como são os cidadãos do Farol e da Culatra, mesmo que nem todos sejam portugueses. Cândinho e Rosa Neves só querem ter uma velhice em paz. Bastava para isso um bocadinho do que está anunciado no azulejo da sua casa: “Vivenda da Boa Vontade”. E, já agora, que os sucessivos responsáveis políticos que por ali prometem o que não dão não se comportem como o animal de estimação dos Hangares, que é o camaleão.
Esta reportagem foi publicada originalmente no jornal Contacto, do Luxemburgo.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL