A recente alteração à lei dos solos, que permite a reclassificação de terrenos rústicos em urbanos para construção de habitação, entrou em vigor a 29 de janeiro com a promessa de aumentar a oferta de casas a preços acessíveis. No entanto, especialistas ouvidos pela Lusa e outros peritos regionais, incluindo um urbanista algarvio, mostram-se céticos quanto ao impacto real da medida, especialmente no Algarve, onde a pressão turística e o investimento estrangeiro já inflacionam o mercado imobiliário. Entre expectativas frustradas e receios de especulação, a nova legislação está longe de ser consensual.
O Algarve na mira da especulação
Ana Rodrigues, diretora executiva do Centro de Conhecimento de Ambiente da Nova SBE, afirmou à Lusa que “a nova Lei dos Solos tem potencial para aumentar a oferta habitacional e reduzir os preços da habitação”, mas sublinhou que “o sucesso dependerá de uma regulamentação eficaz e de políticas complementares”. No entanto, a especialista alertou que “em mercados fortemente pressionados pelo turismo e pelo investimento estrangeiro”, como é o caso do Algarve, “a simples disponibilização de mais terrenos pode não ser suficiente para travar a escalada dos preços”. Rodrigues acrescentou que “a reclassificação de terrenos pode incentivar a especulação imobiliária”, com investidores a adquirirem solos na expectativa de valorização futura, sem garantias de que se transformem em habitação acessível.
No Algarve, onde o turismo representa cerca de 70% do PIB regional, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) de 2023, a procura por segundas residências e alojamentos de luxo tem empurrado os preços para níveis proibitivos.
Uma lei desajustada à realidade regional
Leonardo Costa, docente e investigador da Católica Porto Business School, destacou à Lusa a falta de adaptação da lei às especificidades regionais: “Como é costume no Estado central português, aborda o país como um todo homogéneo que o mesmo não é.” Para o especialista, o impacto para zonas como o Algarve será distinto de outras zonas devido à “grande pressão turística” e à “baixa densidade populacional em certas áreas”. Costa vai mais longe, admitindo que a lei “não venha a ter impacto nenhum” na oferta de habitação acessível, podendo apenas aumentar “o valor dos terrenos passíveis de urbanizar”.
No contexto algarvio, onde vastas áreas ainda são classificadas como Reserva Agrícola Nacional (RAN) ou Reserva Ecológica Nacional (REN), a reclassificação de solos levanta preocupações adicionais. Bento Aires, presidente da Ordem dos Engenheiros – Região Norte e docente da Porto Business School, reforçou à Lusa que “não se esperam grandes impactos no mercado de habitação”, apontando que a lei “favorecerá processos pouco claros”. Para terrenos privados, como muitos no Algarve, Aires considera a aplicabilidade “difícil e pouco atrativa”, limitando os efeitos práticos da medida.
A voz do Algarve: um alerta local
António Nóbrega, urbanista algarvio cronista habitual no jornal Postal do Algarve, escreveu este domingo uma crónica intitulada “A erradamente designada – ‘Lei dos Solos’ – o seu impacto e os danos colaterais provocados”, vai mais longe nas críticas. Para Nóbrega, o Decreto-Lei 117/2024, que altera o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, representa “um risco de consequências imprevisíveis” ao tentar transformar o planeamento territorial estático num modelo estratégico através de um único diploma. “A gestão do território provoca, sistematicamente, escândalos mediáticos de enorme impacto”, escreveu, lembrando que a regulação urbanística esteve na origem da queda dos dois últimos governos portugueses.
No Algarve, onde os Planos Diretores Municipais (PDM) ainda refletem um planeamento “rudimentar” baseado em cartas militares, Nóbrega alerta para a complexidade de implementar um sistema inovador numa região marcada por interesses económicos díspares. “A sociedade exige um novo paradigma de estratégia, mas não se compadece com experiências legislativas de cariz experimental”, sublinhou.
Polémica nacional com ecos regionais
A aprovação da lei, com os votos do PSD, CDS-PP e PS, foi marcada por controvérsia. A demissão de Hernâni Dias, ex-secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, após revelações de que criou empresas imobiliárias enquanto governante, lançou suspeitas sobre os interesses por trás da legislação. No Algarve, onde o mercado imobiliário é dominado por grandes investidores nacionais e estrangeiros, a percepção de favorecimento a privados intensifica-se. O Governo, abalado pela polémica, enfrenta agora uma moção de confiança que poderá ser chumbada, agravando a instabilidade política.
Habitação acessível: um sonho adiado?
A lei prevê que pelo menos 70% da área de construção se destine a “habitação pública, arrendamento acessível” ou “a custos controlados”, mas os especialistas questionam a viabilidade. No Algarve, a falta de infraestruturas em muitas zonas rurais e os elevados custos de construção – agravados pela dependência de materiais importados – dificultam a concretização desta meta. Para os residentes locais, que enfrentam rendas médias de 800 euros por um T2 em Faro (segundo o INE), a promessa de habitação acessível parece cada vez mais distante.
Enquanto o debate prossegue, o Algarve permanece no epicentro de uma tensão entre desenvolvimento económico e justiça social. A “Lei dos Solos” poderá ser um marco na gestão territorial ou apenas mais um capítulo na longa história de expectativas frustradas na região. Como escreveu António Nóbrega, “o caminho faz-se caminhando” – mas, para já, o destino permanece incerto.
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