Os símbolos não são coisa pouca para a humanidade: é a capacidade de criá-los, de representar o real através deles, que nos distingue dos outros animais. Num símbolo condensa-se, em determinados momentos, toda uma história, neles se sintetiza um processo, um conflito, com eles se mobiliza uma causa. São usados como arma para ofender, para oprimir, para marcar, para estigmatizar. São reivindicados como expressões de luta, de libertação, de resistência. São disputados nos seus significados.
Não é de agora que o batom vermelho está nessa liça. No século XVIII, havia ainda quem considerasse que pintar a cara era “obra do diabo” e sinal de “feitiçaria” e, no parlamento britânico, um deputado chegou mesmo a propor uma lei contra as mulheres que usavam batom. O medo masculino de uma feminilidade não tutelada fez com que, nas narrativas conservadoras desses tempos, os lábios coloridos de vermelho fossem codificados (e publicamente censurados) como a manifestação de uma moral duvidosa ou de uma heresia face aos bons costumes. Na realidade, o que assustava os machos da época (e porventura os de hoje) era que ele pudesse ser um sinal de independência e de autonomia das mulheres sobre o seu corpo.
Não será por isso muito surpreendente que, na passagem do século XIX para o século XX, as sufragistas tenham adotado o batom vermelho como símbolo de rebelião. Elas, que se atreviam a lutar por essa ideia escandalosa de que as mulheres – e não só os homens – deveriam ter o direito ao voto, carregavam também nos lábios o batom vermelho que chocava os homens do poder e desafiavam o monopólio masculino da política. Depois disso, em outras épocas, o mesmo símbolo se fez arma de resistência. Contra o ódio público que Hitler lhe tinha, usar batom vermelho (cuja produção nos países Aliados, ao contrário de outros produtos, não foi interrompida durante a II Guerra Mundial) era também uma afirmação contra o fascismo.
E aqui chegados, em 2021, de novo o vermelho assusta e perturba os que têm medo das mulheres sem medo. Das que desafiam, pelas causas que defendem, o sistema patriarcal e a sua estrutura de desigualdade. Das que ocupam os lugares da política ao arrepio da lógica dominante da competição, das que não se adaptam nem conformam à substituição do debate por uma espécie de concurso de varonia ou de campeonato de boçalidade, das que são avaliadas (de uma forma que os homens não são) a partir de julgamentos sobre a sua aparência ou frivolidade que dizem sempre muito mais dos avaliadores do que das avaliadas.
Marisa Matias sabe bem o que é lidar com a cultura do autoritarismo marialva – e fazer-lhe frente. Ela é a criança de Alcouce que, contra todas as probabilidades sociológicas e por conta de um Estado Social de que se orgulha e pelo qual luta, chegou onde muitos gostariam que, ainda hoje, pessoas da sua origem e condição não chegassem. Marisa, a “campeã do clima” no Parlamento Europeu, a deputada reconhecida pelo seu trabalho em defesa da saúde pública ou contra os paraísos fiscais, a pessoa que, há mais de dez anos, se tem empenhado em dar visibilidade ao trabalho invisível das cuidadoras informais, está habituada a lutar contra a indiferença e a enfrentar podres poderes, em Portugal e noutros países.
A onda de solidariedade com Marisa Matias que se tem levantado desde ontem é, pois, mais do que merecida. Através dela vemos o que temos de melhor em nós próprios. Os lábios pintados, de mulheres e homens solidários de tantas opiniões, são muito mais que lábios pintados. São uma afirmação democrática e uma arma contra o ódio. Que dessa vaga faça parte, entre tantas, Ana Gomes, mulher cuja fibra de combate e a integridade de princípios são indiscutíveis, só admira quem não conheça ambas. Nenhuma delas hesitaria em mostrar que é na cooperação e na solidariedade que se faz a diferença contra todos os autoritarismos. Nessa atitude, há uma lição maior nesta campanha, com um alcance que vai além de aritméticas eleitorais.
Para mim, a Marisa é também esta lição. É essa força maior que faz diferença na política, agora e depois. Contra a boçalidade, o orgulho no que somos. Contra o extremismo, a radicalidade dos direitos humanos. Contra o marialvismo, a capacidade de atear a força da solidariedade feminista. Contra as desigualdades, o bem comum, a justiça social e a justiça climática. É isso tudo que representam os lábios vermelhos de Marisa. E eu quero #VermelhoemBelém.
Crónica de Opinião exclusiva do nosso parceiro Expresso
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